LXIX
ANNABETH
SER MORTA PELO TÁRTARO NÃO parecia lá uma grande honra. Ao encarar o redemoinho de escuridão que era seu rosto, Annabeth decidiu que preferia morrer de uma forma menos memorável. Talvez caindo das escadas, ou uma morte pacífica durante o sono aos oitenta anos, depois de uma vida tranquila com Percy. Sim, isso parecia bom. Não era a primeira vez que Annabeth enfrentava um inimigo que não tinha condições de derrotar usando a força. Normalmente, isso seria sua deixa para tentar ganhar tempo com alguma de suas conversas enroladoras de filha de Atena. O problema é que sua voz não saía. Não conseguia nem fechar a boca. Pelo que sabia, estava babando tanto quanto Percy quando ele dormia. Estava vagamente consciente do exército de monstros correndo ao seu redor, mas após seu rugido inicial de triunfo, a horda ficara em silêncio. Àquela altura, Annabeth e Percy já deviam ter sido feitos em pedaços. Em vez disso, os monstros mantinham distância, esperando Tártaro fazer alguma coisa. O deus das profundezas flexionou os dedos, examinando as garras negras. Não tinha expressão, mas aprumou os ombros como se tivesse ficado satisfeito. É bom ter forma, entoou ele. Com estas mãos, posso eviscerar vocês. A voz dele soava como uma gravação tocada ao contrário, como se as palavras estivessem sendo sugadas pelo vórtice de seu rosto em vez de projetadas. Na verdade, tudo parecia sugado pelo rosto daquele deus: a luz fraca, as nuvens venenosas, a essência dos monstros, até a própria frágil força vital de Annabeth. Ela olhou ao redor e se deu conta de que tudo naquela vasta planície passara a exibir uma cauda vaporosa de cometa apontada na direção de Tártaro. Annabeth sabia que devia começar a falar, mas seus instintos lhe diziam para se esconder, para evitar fazer qualquer coisa que pudesse chamar a atenção do deus. Além disso, o que poderia dizer? Você não vai conseguir se safar!
Isso não era verdade. Ela e Percy só tinham sobrevivido até aquele momento porque Tártaro estava ocupado saboreando sua nova forma. Queria o prazer de fazê-los em pedaços com as próprias mãos. Se Tártaro quisesse, Annabeth não tinha a menor dúvida de que ele poderia devorar sua existência com um simples pensamento, com a mesma facilidade com que havia vaporizado Hiperíon e Crios. Será que haveria um renascimento depois daquilo? Annabeth não queria descobrir. Ao lado dela, Percy fez algo que ela nunca o havia visto fazer. Ele largou a espada. Contracorrente simplesmente caiu de suas mãos e bateu no chão com um ruído abafado. A Névoa da Morte não ocultava mais seu rosto, mas ele ainda parecia um cadáver. Tártaro rosnou de novo, o que possivelmente era uma risada. O medo de vocês é um aroma maravilhoso, disse o deus. Entendo o apelo de ter um corpo físico com tantos sentidos. Talvez minha amada Gaia tenha razão ao desejar despertar de seu sono. Ele esticou sua gigantesca mão roxa e poderia ter arrancado Percy do chão como se o semideus fosse uma erva daninha, mas Bob o interrompeu. — Vá embora! — O titã apontou a lança para o deus. — Você não tem o direito de se meter! Me meter? Tártaro se virou. Eu sou o senhor de todas as criaturas das trevas, Jápeto, seu insignificante. Posso fazer o que quiser. Seu rosto, a espiral de escuridão, começou a girar mais rápido. O som uivante era tão terrível que Annabeth caiu de joelhos e tapou os ouvidos. Bob se desequilibrou. Sua energia vital, na forma da cauda de cometa, ficou mais alongada ao ser sugada na direção do rosto do deus. Bob rugiu em desafio. Partiu para cima do deus, mirando a lança no peito de Tártaro. Antes que ela o atingisse, Tártaro jogou Bob para o lado como se ele não passasse de um inseto incômodo. O titã foi jogado longe. Por que você não se desintegra?, perguntou Tártaro. Você não é nada. É ainda mais fraco que Crios e Hiperíon. — Eu sou Bob — disse Bob. Tártaro rosnou. O que é isso? O que é Bob? — Eu escolhi ser mais que Jápeto — disse o titã. — Você não me controla.
Não sou como meus irmãos. A gola de seu uniforme se moveu. Bob Pequeno saiu de debaixo da roupa e pulou para o chão. O gatinho aterrissou diante de seu dono, então arqueou as costas e chiou para o senhor do abismo. Bob Pequeno começou a crescer diante dos olhos de Annabeth. Sua forma não parou de tremeluzir até se transformar em um esqueleto de tigre-dentes-desabre em tamanho real. — Além disso… — anunciou Bob. — Eu tenho um bom gato. Bob Não Tão Pequeno atacou Tártaro e cravou as garras em sua coxa. O felino escalou sua perna e entrou por debaixo da cota de malha do deus. Tártaro batia os pés e gritava, aparentemente deixando de saborear sua forma física. Enquanto isso, Bob cravou a lança no lado do corpo do deus, logo abaixo de seu protetor peitoral. Tártaro rugiu. Ele tentou acertar Bob, mas o titã recuou e saiu de seu alcance. Bob estendeu a mão. Sua lança se libertou da carne do deus com um arranco forte e voou de volta para ele, o que fez Annabeth quase perder o fôlego tamanha a surpresa. Ela nunca havia imaginado que uma vassoura pudesse ter tantas utilidades. Bob Pequeno pulou de debaixo da saia de Tártaro e correu para o lado de seu dono, com icor dourado escorrendo de seus enormes dentes de sabre. Você vai morrer primeiro, Jápeto, decidiu Tártaro. Depois, vou pôr sua alma em minha armadura, onde ela vai se dissolver lentamente, várias e várias vezes, em agonia eterna. Tártaro bateu o punho no peitoral de sua armadura. Os rostos pálidos aprisionados no metal se agitaram e deram gritos silenciosos, implorando para sair. Bob se virou para Percy e Annabeth. O titã sorriu, o que provavelmente não teria sido a reação da garota caso tivesse sido ameaçada de morte e agonia eterna. — Cuidem das Portas — disse o titã. — Eu cuido do Tártaro. O deus jogou a cabeça para trás e urrou, o que criou um vácuo tão forte que os demônios que voavam mais próximos foram sugados pelo vórtice de seu rosto e despedaçados. Cuida de mim?, perguntou o deus em tom de zombaria. Você não passa de um titã, um filho inferior de Gaia! Você vai pagar por essa arrogância. E quanto a
seus amigos mortais insignificantes… Tártaro gesticulou para o exército de monstros, convidando-os a avançar. DESTRUAM-NOS!
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