segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 750 : O MESTRE DOS GAMES

11. Cemitério de destroços

A hipótese de acidente rodoviário estava definitivamente descartada. A caminhonete branca, chapa DPA 3338, fora localizada em outro estado, e já estava sendo transportada para o pátio do 1º DP. O dr. Asdrúbal sabia que, mais cedo ou mais tarde, a caminhonete seria encontrada pela polícia. A chance de ser levada, como acontecia com a maioria dos veículos desse modelo, para o outro lado da fronteira e entregue a receptadores de um país vizinho, ele julgava praticamente impossível. Pois o crime fora cometido não por uma quadrilha especializada em roubo de carros, e sim por bandidos que agiam isoladamente e não pareciam experientes. O delegado quase apostara com um dos investigadores que a caminhonete, ou partes dela, estaria num desmanche qualquer da região. A outra hipótese com que também trabalhava — mas que fora se mostrando a cada dia menos provável, e agora estava eliminada — era que o veículo seria encontrado ribanceira abaixo, num trecho inacessível da serra, totalmente carbonizado. Por fim, nem isso nem aquilo: a caminhonete fora localizada numa revenda de automóveis, com chassis e documentos adulterados, e pronta para ser vendida. A tal revenda já estava na mira da polícia há algum tempo. Como a caminhonete chegara até a loja era ainda um mistério que logo estaria sendo desvendado, acreditava o dr. Asdrúbal. Luci e Leandro acompanhavam o trabalho do guincho para descer o veículo no pátio da delegacia. Só de olharem a caminhonete já sentiram revigoradas as esperanças. Algo próximo e familiar havia sido recuperado, por inteiro, e isso era reconfortante, apesar de ser apenas um objeto. — Assim como o carro — afirmara o delegado triunfante ao telefone —, em breve vocês terão os dois de volta. Ilesos, se Deus quiser. Sem um arranhão. Uma garoa fina, de serra, encharcava a rua, a delegacia e as viaturas da polícia estacionadas no pátio. A caminhonete branca e polida de seu Vito — após ser retirada do caminhão — contrastava com o vermelho enlameado das ruas, das viaturas imundas ao lado e da montoeira de carros velhos, batidos e desmanchados, que faziam o pátio da polícia se parecer mais com um cemitério de destroços. O carro de Leandro também tinha respingos de barro até no teto. Havia sido uma aventura difícil, um verdadeiro rali, deixar o asfalto e pegar a
estrada de terra até chegar à delegacia de Ponte Alta. Deslizando, quase atolando a todo instante, escorregando nas curvas, perigosamente. — Quando tudo isso acabar, nunca mais ponho os pés num fim de mundo desses — sussurrou Leandro no ouvido de Luci, enquanto atravessavam a rua em direção à padaria da esquina. Decidiram tomar um café, enquanto esperavam a vez de serem atendidos pelo delegado. Diante do balcão, não tinham muita escolha e pediram pão com manteiga na chapa. Que diferença— em relação à padaria com a vitrine repleta e colorida que frequentavam na cidade em que moravam. Essa era escura, suja e de aspecto pobre. Sem as infinitas opções de salgadinhos, pães e doces a encher os olhos dos clientes. No teto, uma serpentina de luz lilás para atrair mosquitos. Duas peças de mortadela penduradas cada uma num dos lados do caixa e que, pelo jeito, deviam estar ali havia um bom tempo. Além disso, os homens que entravam ou saíam, sem exceção, vestiam-se rudemente. A barba por fazer, na cabeça o boné com propaganda estampada, e as sandálias de dedo na imundície do chão frio. Todos pareciam ter olhares desconfiados para o casal que, facilmente se percebia, não era do lugar. Luci e Leandro não se sentiam propriamente à vontade naquela padaria. Supunham que precisavam ficar atentos, prevenidos, porque aquele, encostado no balcão, tomando cerveja a essa hora, tinha cara de bandido — ou, pelo menos, o que Luci e Leandro achavam que era a cara de um bandido. — Eu já decidi — disse Luci, cochichando no ouvido de Leandro. — Não quero que papai continue neste lugar. Quero ele morando com a gente, junto da gente. — Para isso precisamos vender a casa, Luci. Seu pai vende a chácara e compramos juntos um apartamento grande. De três, quatro dormitórios. Morar em apartamento é mais seguro. O pão quentinho com a manteiga derretida, acompanhado do copo de café com leite, acabou por fazer bem a ambos. Leandro, que antes tinha pressa de sair da padaria, chegou até a perguntar a Luci se repetiriam o pedido, assim que a moça terminasse de atender o rapaz que pedira para fatiar um montão de mortadela que parecia não ter mais fim. Quando voltaram para a delegacia, o dr. Asdrúbal estava terminando a reunião que fazia a portas fechadas com a equipe de investigadores. Luci e Leandro já os conheciam de vista, desde a pedra jogada na varanda da chácara. Ao saírem da sala do delegado e cruzarem com o casal no corredor, pareciam excessivamente apressados. Luci tentou em vão falar com os investigadores. Eles se mostraram sem tempo para conversas, e cada qual soube
se esquivar com a desculpa de que qualquer informação só poderia ser dada pelo delegado. Quando Luci pensou que a vida de seu filho e de seu pai dependiam da perícia desses homens, sentiu um aperto no coração. Seriam competentes? Não se pareciam, em absoluto, com os investigadores de polícia, fortes e saudáveis, que vestiam terno e gravata, como acostumara ver nos filmes americanos. O dr. Asdrúbal fez sinal para que entrassem em sua sala. A mesa estava abarrotada de pastas com capa de papelão duro e desbotado, certamente contendo processos em andamento. O delegado empilhou as pastas num canto, abrindo espaço no centro da mesa. Chamou um assistente e lhe pediu que trouxesse a placa. Estavam lá, no cimento, as marcas das mãos! Abaixo, a data e a assinatura do pai. Sim, não havia dúvida, era a assinatura do pai, reconheceu Luci. Instintivamente, ela abriu os dedos e devagar aproximou suas próprias mãos das marcas espalmadas, impressas pelo pai. Colocou seus dedos sobre as marcas dos dedos dele, deixando-os assim por um momento. Depois, retraiu as mãos rapidamente, talvez envergonhada, percebendo o absurdo de seu gesto. Como saber se aquelas mãos eram realmente as dele? Como saber se fora ele quem assinara? Como saber? — A assinatura confere, certo? Acreditar que foi seu pai é acreditar que ele está vivo — disse o delegado. — Mas, delegado, por favor... — Leandro levantou-se para olhar mais de perto a placa. — Que garantias temos de que tudo isso não é uma farsa? — Cinquenta por cento! — respondeu o delegado. — Cinquenta por cento! — repetiu. Em seguida, aparentando impaciência, disse: — Esse número está bom para vocês ou preferem outro? É exatamente a metade da chance de ter sido ele, por estar vivo, ou de não ter sido, por estar morto. — Meu Deus, dr. Asdrúbal?! — Luci se desesperou, já começando a soluçar. — Então, acreditem em mim. Confiem em mim, poxa! Ele está vivo, e ponto-final. Dito isso, o delegado respirou fundo e, parecendo mais calmo, começou a falar pausadamente: — Tudo leva a crer que essas são as mãos de seu pai; a assinatura é dele e ele também escreveu a data. A placa foi deixada junto com o bilhete, ao lado da imagem de Santo Expedito, no altar pequeno da igreja, provavelmente depois da missa das seis. O padre a encontrou e a trouxe até nós. Agora, sem perder mais
tempo com perguntas, vamos tratar do assunto resgate, que é mais importante.

* * *

Mas... Nem se Leandro vendesse a casa, a chácara de seu Vito, a caminhonete e mais o carro dele, ainda assim não teria o dinheiro para pagar nem sequer uma parte do resgate. Nem se arranjasse dinheiro com todos os conhecidos que tinha. Nem se pedisse empréstimo no banco, jamais conseguiria cobrir aquele valor. Nunca, nunca, nunca! Não tinha jeito! — Vejam só — disse o delegado, parecendo pouco preocupado com a reação de Leandro e o que representava aquele montante de dinheiro exigido pelos sequestradores —, vejam só. Esses caras são mesmo engraçados. Arrumaram um jeito que considero até profissional para respondermos a eles. Vejam só: foram profissionais na forma, mas inexperientes no conteúdo. Se fosse ainda um jornal da capital, de grande circulação! Porém, foram escolher justamente o jornal da região! Vê se pode uma coisa dessas! — O delegado falava com ar de descrédito, até de zombaria, balançando a cabeça, inconformado, enquanto olhava o bilhete: — Eles estão bem embaixo do nosso nariz e não estamos vendo! A família teria de fazer publicar na Seção de Classificados de O Diário de Ponte Alta, no dia 19, uma oração de pedido de graça a Santo Expedito, padroeiro dos negócios, identificada com a letra V. A publicação em si significaria a concordância com o valor integral do resgate. Esse, conforme exigido no bilhete em letras garrafais, seria o único jeito de o corpo de seu Vito não aparecer, da próxima vez, petrificado inteiro dentro de um bloco de cimento. — Pa... pa... pagar...? Como? — Leandro continuava gaguejando, os olhos arregalados. Luci chorava baixinho ao lado dele, fazendo somas mentais absurdas, sem ver saída. Com quanto poderia contribuir André, seu irmão, que vivia de uma bolsa de estudos numa universidade fora do Brasil? — Calma, calma aí, gente. As coisas não podem ser feitas assim. Mesmo se vocês tivessem todo esse dinheiro, pagando rápido corre-se o risco de eles pedirem ainda mais. Precisamos ganhar tempo. Quanto mais tempo, melhor. Antes, vamos exigir que eles se pronunciem sobre o garoto. A menção da palavra "garoto" fez Luci soluçar mais alto. — Calma, dona Luci. Vamos, primeiro, pedir notícias. É o que vamos fazer, evitando correr riscos. Enquanto isso, acho bom vocês irem calculando o
máximo de dinheiro que conseguem arranjar. Falem com os parentes, os amigos, os amigos dos amigos, amigos de seu pai, fale com seu irmão, dona Luci; só não assinem nada nos bancos, nada, por enquanto. Eu sei o que estão passando, é difícil, mas...

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