21. Tudo é possível
— Acho normal que isso aconteça, dona Luci. Não sei se a senhora sabe, mas existe até um nome para isso. Chamam de síndrome pós-sequestro, estresse pós-traumático, ou coisa parecida. Depois de ter dado a entrevista ao jornal e ido à padaria para tomar uma garrafa inteira de água gelada, mais para refrescar a cabeça do que matar a sede, assim que voltou para a sua mesa o delegado resolveu fazer o telefonema que vinha protelando há dias. O assunto o incomodava, mas precisava saber como iam as coisas, até para amenizar o sentimento de culpa. — Síndrome? — Luci espantou-se com a palavra. — Sim. São sequelas que se manifestam em quem passa por uma situaçãolimite como a que ele passou. Que podem ir desde um simples sentimento de simpatia para com os sequestradores, pedindo para eles o perdão, a até mesmo traumas psicológicos graves, gravíssimos. Mas não acho que seja o caso. O garoto está apenas confuso. — Ele jura que tudo que disse é verdade, dr, Asdrúbal. — O que a senhora acha? — Sei que, toda vez que ele conta a história, repete sempre do mesmo jeito, sempre com os mesmos detalhes. — Dona Luci, isso não é nada que um bom psicólogo não possa tratar. Talvez, nem precise. Mas, se precisar, a própria Secretaria de Segurança Pública pode indicar um profissional especializado. Considere: seu filho está sob efeito do trauma. Com o tempo, ele vai se lembrar de tudo como realmente aconteceu. — Deus o ouça, delegado. — Aconselho a senhora a não forçar nada com o garoto. Tudo é muito recente. Não duvide dele. Deixe que descanse e vá aos poucos retomando sua vida normal. Voltar às aulas, estar com os amigos, divertir-se. — Antes, dr. Asdrúbal, ele precisa engordar um pouquinho. Está muito magro e tem tido pesadelos horríveis. Mas o médico disse que num quadro geral Cláudio Renato está bem, graças a Deus. — Só me diga uma coisa, dona Luci. Essa história do... videogame. Ele jogava muito videogame?
— Jogava. — Viciado? — Jogava bastante, delegado. — Isso explica tudo, não? O dr. Asdrúbal ia encerrar a ligação, mas não tinha feito a pergunta que precisava fazer, e ainda não conseguira. Uma pergunta que o incomodava e era o verdadeiro motivo do telefonema. Mesmo porque, dependendo da resposta, ele se sentiria mais ou menos aliviado. — E como está seu Vito? — Graças a Deus, está melhor. Deve voltar ao hospital na próxima semana. O médico quer ver como está o ferimento. A bala alojou-se no joelho esquerdo, no único lugar que poderia ter se alojado sem prejudicar os movimentos. A equipe do hospital disse que foi por milagre. Graças a Deus, um milagre. Um centímetro, e papai nunca mais dobraria a perna. Se Deus quiser, logo, logo ele estará andando novamente. — A senhora disse graças a Deus... Mas, dona Luci, não se esqueça, é graças ao seu filho também, que se jogou sobre o avô, na hora H, fazendo o bandido errar o tiro. — Ai, dr. Asdrúbal, eu não gosto nem de pensar...
* * *
Assim que terminou a conversa com o delegado, Luci relembrou o que seu irmão dissera, numa ligação internacional que avançara madrugada adentro. André dizia que tudo era possível. "Por que não? Tudo é possível, Luci." Para quem estudava Física Quântica como ele e pesquisava a existência de universos paralelos, o que o sobrinho lhe contara não era um absurdo. "Por que não? Tudo é possível, minha irmã." Por sua vez, o dr. Asdrúbal falara em trauma, na tal síndrome, para explicar a história contada por Cláudio Renato. E, pensando em quem tinha razão, Luci não se conteve e subiu novamente até o quarto. Girou a maçaneta da porta bem devagar para não fazer barulho. Ambos continuavam dormindo. Luci foi até o filho e ajeitou melhor a coberta sobre ele. Depois ajeitou a do pai. Existia felicidade mais completa do que essa que sentia agora? Leandro chegou em seguida e abraçou Luci. Ficaram assim, abraçados, por um momento. Como é bom olhar o rosto de filho dormindo...
Ninguém, ela jurou para si, ninguém, nunca mais, conseguiria tirá-los de perto dela.
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