segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 744 : O MESTRE DOS GAMES

5. A foto

E os pais de Cláudio Renato, como estão? Se a TV estivesse ligada, estaria passando a novela das oito. O pai chega do trabalho. Para o carro em frente ao portão de casa, o motor continua funcionando. Mal começa a abrir o portão, Luci corre até ele e exige, implora, ordena que volte para o carro e siga imediatamente para a chácara. O dia todo ela teve um mau pressentimento, explica. Passara o dia ao telefone. Estava achando muito esquisito aquele silêncio, aquela falta de notícia, e não iria sossegar até que visse o filho e seu pai. Leandro, então, manobra lentamente o carro. Atende, meio a contragosto, a insistência de Luci. Tenta ainda persuadi-la a mudar de ideia. Diz ter sérias dúvidas sobre se percorrer mais de cem quilômetros àquela hora da noite — ele cansado, sem ao menos ter jantado — é o certo a fazer. Se, antes de seguirem para a chácara, não seria mais sensato localizar alguém por lá, algum telefone, de um vizinho, por exemplo. Alguém, enfim, que pudesse dar alguma informação. — Eu já liguei, Leandro. Fiz mais de cinco ligações para seu Olavo, que mora na chácara vizinha à de papai. E desde cedo ele vem dizendo que a casa está fechada e não tem ninguém. Leandro, pela primeira vez então, sente um arrepio percorrer seu corpo. Está começando a aceitar a ideia de ter de dirigir até a chácara, àquela hora. Está começando a se preocupar com o filho. Durante o dia, quando Luci telefonara para o escritório, ele não vira nenhum motivo para preocupação. Afinal, o sogro podia ter decidido passar o dia fora. Como era um velho que se dizia dono do próprio nariz — vivia se vangloriando da sua liberdade, repetindo que se orgulhava de não ter rabo preso com ninguém por qual motivo então alguém assim haveria de avisar a família toda vez que pretendesse dar uma escapadela? Seu Vito não era homem de dar satisfação do que fazia ou deixava de fazer. Agora, porém, talvez porque Leandro sentisse um pouco da aflição que Luci sentia (sentada no banco ao lado, esfregando ansiosa as mãos, o olhar triste e fixo para a frente, em direção à escuridão do asfalto), ele percebe que já está pensando no que vinha evitando pensar desde o primeiro telefonema de Luci
para o escritório: havia sim motivos para preocupação. As notícias, ultimamente, só tratavam de violência. Crime, assalto, sequestro, assassinato, um atrás do outro. Um colega de trabalho que morava num desses prédios ditos de segurança máxima, com vigias, portões eletrônicos, cercas eletrificadas, sistemas de alarme etc., apesar de tudo isso teve o apartamento assaltado. Três apartamentos do andar foram assaltados naquela noite. Disseram que o bandido, como se fosse um homem-aranha, entrara nos apartamentos pela varanda, escalando mais de oito andares do prédio! Tudo bem, a vida estava dura, muito dura, cada vez mais gente passando necessidade, refletiu Leandro. Mas vida dura não deveria ser desculpa para atos de violência. Emprego quase não havia. Leandro sentia o coração apertar toda vez que uma enorme fila de desempregados se formava na portaria da fábrica onde trabalhava. Todos ali espremidos desde a madrugada. Homens, mulheres, jovens, idosos e até crianças, em disputa das poucas vagas oferecidas para ganhar uma migalha de salário. E, a cada dia, mais gente precisando de trabalho. A cada vez que se anunciavam vagas, a fila era maior. Logo depois que Cláudio Renato nasceu, ele e Luci juntaram o que tinham e o que não tinham e conseguiram comprar a casa em que moravam. Era então um bairro tranquilo e arborizado, com boas perspectivas de valorização. Para chegar em casa, ele passava por campos de futebol ao lado de uma avenida. Jogara bola nesses campos, aos domingos, num time formado pelo pessoal da vizinhança. Cláudio Renato era pequeno e gostava de acompanhar o pai nessas ocasiões. Seus primeiros chutes numa bola foram dados num desses campos de várzea. Hoje, eles já não existem. No lugar dos campos, uma favela. Milhares de pessoas morando em pequenos quadrados feitos de tijolos vermelhos, cobertos com laje, como uma caixa. Barracos de madeira, tapumes, compensados. Lonas de plástico preto. Chapas de zinco e papelão. Muitos dormindo no chão, embaixo do viaduto. O bairro já não era tranquilo. Um homem havia sido esfaqueado na esquina, a poucos metros da casa. Diziam que ali, onde jogara bola e Cláudio Renato correra com outras crianças, era agora uma boca de fumo. Leandro não se lembra de ter tido nem uma vez sequer medo de assalto, quando garoto. Era livre para correr pelos terrenos baldios, andar de bicicleta e jogar bola nos campinhos, até a noite. Os tempos eram outros, é claro. Mas hoje... Que mundo era aquele que ele e os outros pais estavam deixando para os filhos? Nos fins de tarde — quando sua volta do trabalho coincidia com o horário da saída das escolas —, ao passar pela avenida ao lado da favela, as crianças, alegres, espertas, corriam desordenadas, como se esquecessem da própria condição ou não se importassem. Leandro as olhava com um misto de
compaixão e culpa. Ainda mais sabendo que muitas ali dividiam o barraco, amontoadas no chão para dormir, com vários membros da família. Algumas iriam comer só no dia seguinte, só a merenda escolar. A maioria nem tomaria banho, muito menos receberia um beijo de boa-noite dos pais. Leandro se perguntava se a condição precária de vida dessas crianças, a maioria com os pais sem emprego, sem instrução, sem conseguir nem sequer um meio de sustentar a família, se isso não era um outro tipo de violência, uma violência velada, que tinha lá os seus responsáveis. Leandro pensou na humilhação que sentia um pai que não tinha trabalho. O olhar humilhado desse pai. Igual ao olhar humilhado que percebia nas pessoas na fila, diante do portão da fábrica onde trabalhava.

* * *

O carro deixou o asfalto e seguia agora pela estrada de terra que dava acesso à chácara. Até ali, uma viagem tensa, silenciosa e solitária. Cada qual com seus questionamentos. A mãe, aflita. O pai, já sem conseguir acalmar a esposa, pois ele mesmo não acreditava que tudo estava bem. É claro que, com toda essa onda de violência, Leandro e Luci pensavam no pior. Inclusive, ele começou a temer pela sorte de ambos ao dirigir por aquela estrada deserta, àquela hora da noite, num breu total. De ambos os lados da estrada, mato. Se furasse um pneu, ou se encontrassem um tronco impedindo a passagem, o que fazer? Como seu sogro tinha a coragem de morar num lugar daqueles?

Leandro, a todo momento, olha pelo retrovisor. Aquela luz, ao longe, aproximando-se rapidamente. O reflexo da luz no retrovisor, incomodando. Na bifurcação, depois que pegaram a estrada de terra, aquela luz aparecera do nada.
Esforçando-se por manter a calma e não inquietar Luci, que não notara o clarão (como um olho gigantesco, a luz avançava por trás, diminuindo a distância entre os carros), Leandro tenta se convencer de que está se deixando levar pelo lado emocional, passando a olhar para tudo e para todos com olhos de perigo, de medo. “Também não é para tanto; no mundo não há só maldade", pensa ele. E com esse repentino impulso racional, Leandro conclui consigo: deve ser o farol de uma moto; alguém apressado voltando para casa, nada além disso. Tenta conversar com Luci para quebrar o silêncio e aliviar a tensão. Diz, num tom provocativo e ao mesmo tempo de desânimo, que, se não encontrarem ninguém na chácara, então terão perdido a viagem. Luci responde: — Eu já decidi, Leandro. Se eles não estiverem lá, vamos direto à polícia. — Fazer o que na polícia, Luci? Dizer que um velho e um menino estão desaparecidos? De que adianta? — Leandro olha pelo retrovisor e acelera mais ainda. É quando um clarão invade o interior do carro, assustando Luci. Ela olha detidamente para trás, vigilante ao movimento, surpresa por ter alguém naquela estrada, àquela hora, vindo logo atrás deles. Forçando a passagem! — Isso mesmo. Vamos à polícia dizer que eles estão desaparecidos — diz Luci. Os olhos de Leandro não desgrudam um só instante do retrovisor. As mãos firmes no volante, quase a espremê-lo. — Como a polícia vai sair por aí procurando por um velho e um menino, que nem sabem quem são? — diz Leandro, mas Luci já não parece ouvir. Um carro velho e empoeirado, caindo aos pedaços, com um só dos faróis aceso, passa por eles numa parte mais larga da estrada. No pouco tempo em que está à frente, ao alcance dos faróis do carro de Leandro, dá para ver dentro do veículo o rosto de três crianças sorridentes, acenando, mandando beijos do banco de trás. Leandro e Luci respiram aliviados. Quanto mais o carro se distancia, mais recobram a calma. Leandro chega até a retribuir o beijo, de um jeito tímido, para as crianças, quando o carro entra num atalho, à esquerda. Então, Luci acende a luz do teto, que despeja uma cor fraca, amarelada, sobre eles. E, mostrando a Leandro a foto que encontrara no armário, diz: — Olhe, Leandro! É assim que a polícia vai saber quem procurar.

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