segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 742 : O MESTRE DOS GAMES

3. Chão frio de terra batida

A maior preocupação de seu Vito, apesar do estado lastimável em que se encontrava (o capuz enfiado no rosto, jogado no chão, num barraco escuro de terra batida), não era tanto com ele, nem mesmo com as dores que sentia por todo o corpo. Nem se importava com isso, e sim com o neto. Uma cena se reprisava milhões de vezes em sua cabeça, sem que conseguisse parar de pensar nela: o momento exato em que Cláudio Renato conseguiu se desvencilhar dos bandidos e acabou fugindo, correndo em disparada para dentro da mata. Minutos depois, quando dois dos bandidos voltaram da perseguição, ambos arfando de cansaço, ouviu um deles dizer: "O que era pra ser feito foi feito. Vamos logo embora daqui!". Uma dúvida cruel foi tomando conta de seu Vito a ponto de abarcar tudo: será que o tiro que ouvira, assim que os bandidos gritaram para Renato parar... Será? Não! Não podia ser, preferia acreditar que não. Seu neto era o garoto mais esperto do mundo. Uma doce lembrança veio então em seu socorro, aliviando um pouco a sensação de frio que sentia nas costas, como se milhões de agulhas a estivessem perfurando: a primeira vez em que Cláudio Renato subiu numa bicicleta. Como esquecer? O presente chegou embalado numa grande caixa de papelão. Cláudio Renato acompanhou de perto o avô na montagem da bicicleta, peça por peça, e quando só faltava fixar as hastes com as rodinhas sobressalentes, uma de cada lado da roda de trás, o neto não deixou. Disse que não, não era preciso, não queria aquelas rodinhas de jeito nenhum. Teimou dizendo que não precisava delas para se equilibrar. "Você é corajoso, hein, Renato!" E bastou um empurrãozinho do avô para que saísse pedalando. Porém, logo em seguida, a alegria de todos foi se transformando em pânico iminente ao verem Cláudio Renato virar para a direita e, assim, pegar o descidão. Luci fez o sinal da cruz, apavorada. O pai gritou e saiu correndo atrás, mas o filho já estava longe, descendo a rua embalado. E, quando todos esperavam pelo pior — que rapidamente se aproximava, tomando a forma branca, alta e dura do muro do condomínio —, Cláudio Renato simplesmente soube frear a bicicleta, fazer a curva com uma perfeição de ciclista profissional e subir a rampa de volta. Estampava tal sorriso de felicidade no rosto que, como uma foto, ficou para sempre gravado na memória de seu Vito.
A mesma habilidade o neto já demonstrara nos chutes a gol, pondo até um efeito especial na bola. Mas habilidade mesmo demonstrou quando o pai instalou pela primeira vez um computador na casa. Cláudio Renato lidava com tamanha facilidade com a máquina que todos concordaram que se desenhava ali uma futura profissão. E na escola, então? Por mais que a mãe exigisse que estudasse, o pouco tempo que passava com as apostilas era suficiente para transformá-lo em um dos melhores alunos da classe. Para seu Vito, o neto, com certeza, era um dos sujeitinhos mais espertos que conhecia.

* * *

Naquela manhã fria, quando os bandidos voltaram da perseguição, logo após a fuga espetacular de Cláudio Renato, seu Vito optou por ficar bem quieto onde estava. Imaginava que, assim, talvez pudesse ser esquecido ali, largado no chão feito um pacote. Fingiu-se de desmaiado, de morto, de pedra. Porém, foi impossível não se abalar quando ouviu um deles dizer que o que era pra ser feito havia sido feito.

Seu Vito, naquele instante, prendeu a respiração. Se pudesse, ele se transformaria em pedra e até pediu a Deus por isso. Havia a esperança absurda, improvável, de que os bandidos fossem embora, que levassem o carro e fim. Era um velho imprestável, eles o amarraram, haviam batido nele, já estavam com o carro. O que poderiam querer mais? Evitava pensar em ser levado não sabia para onde nem para quê. Não! Não iria a lugar nenhum. Ah, não iria mesmo, sem antes saber do neto. Com a ajuda de Deus, os dois iriam terminar o dia no pesqueiro, seu Vito chegou a pensar. Como se tudo aquilo pelo que estavam passando se resumisse a um horrendo pesadelo do qual despertariam juntos. Foi então que a voz que se fazia ouvir mais forte do que todas ordenou o que jamais gostaria de ter ouvido: — Pega o velho, enfia o capuz nele e joga no carro. Seu Vito se fingiu mais ainda de morto. — Velho desgraçado, levanta, levanta logo daí! Sentiu mais um chute nas costas. Continuaram a chutá-lo, e já não sentia mais as costas, nem as pernas, nada. Tentou se levantar. Mas como? Não conseguia. — Por favor, por favor, não façam isso. Tenham piedade. Pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo! — implorou seu Vito. Um dos bandidos o pegou pelos braços, o outro pelas pernas, e o jogaram no porta-malas. Quando bateram a porta, usaram tamanha força e o barulho foi tanto que o deslocamento do ar deixou seu Vito surdo e desacordado por um bom tempo. Talvez tenha desmaiado, quem sabe de dor. Porque, quando voltou a si, demorou para compreender a causa de tantos solavancos que o moíam por dentro. Quando foi percebendo aquela escuridão e identificando o som rouco do motor, pensou que só lhe restava manter a calma e rezar. Rezar, rezar e rezar. Mas como manter a calma na situação em que estava? Aqueles homens eram o pior que poderia existir da espécie humana, pensou. Não, não eram seres humanos. Eram animais, mas animais sem alma, sem coração. Que espécie medonha era aquela? Para que tanta maldade? Por que todo esse mal, meu Deus, por quê? Seu Vito sentiu medo, muito medo. Nunca sentira tanto medo na vida. Medo de o homem, igual a ele, ser capaz de praticar o mal pelo mal. E ter essa comprovação por meio dele, do neto. Foi quando seu Vito começou a duvidar se o neto realmente havia conseguido fugir. Eram tão cruéis e selvagens, tão
monstruosos, que na certa deram um tiro no menino pelas costas! Ao pensar nisso, o choro irrompeu sem que ele conseguisse se controlar. Chorou como uma criancinha chora. Chorou como havia muitos anos não chorava Um choro sentido, de medo e desespero, de angústia, raiva e ódio. Chorou de saudade e desesperança. Chorou como se o que haviam feito com o neto tivesse sido por culpa sua. Um movimento brusco do carro e seu corpo parou de sacolejar. Era como se o corpo já não lhe pertencesse. Quanto tempo durara aquela viagem dos infernos? Vinte minutos, uma hora, um dia? Mais? Assim que abrissem o portamalas, não deixaria que os bandidos percebessem que estava chorando.

* * *

Pelo frescor e cheiros acres que aspirou como alimento sagrado, apesar de não enxergar nada, era fácil concluir que estavam num local ermo, de muitas árvores. Mas não conseguia ouvir nada além do vento fustigando galhos. Nenhum pássaro companheiro cujo canto pudesse identificar. Foi jogado no chão. Talvez numa cabana no meio do mato ou numa construção inacabada, pensou. Sentia as suas costas na parede de tábua, sentia o chão frio de terra batida. Umidade e trevas. Sem que ainda desamarrassem suas mãos ou ao menos lhe tirassem o capuz, ouviu a voz mais forte gritar, dirigindose a ele: — Velho desgraçado. Vê se não vai morrer aí! Depois, ouviu o som de uma porta se fechando. Corrente de ferro, cadeado, escuridão. Seu Vito adormeceu no canto duro e frio onde o jogaram. Sem conseguir parar de pensar se o tiro...


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