segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 745 : O MESTRE DOS GAMES

6. Pé descalço

O DIÁRIO DE PONTE ALTA > FOLHA POLICIAL, DIA 12 Avô e neto desaparecidos

Especial para O Diário Desde o último dia 8, estão desaparecidos Vito Henrique Cavalcante, viúvo, 75 anos, residente no loteamento Fazenda da Ilha, em Ponte Alta, e Cláudio Renato Cavalcante Marques, 13 anos, residente na Capital, neto de V.H.C. Segundo os pais do garoto — que registraram queixa no 1º Distrito Policial de Ponte Alta —, o filho passava as férias de verão com o avô. A mãe começou a desconfiar de que algo poderia ter ocorrido a ambos quando suas ligações telefônicas para a chácara deixaram de ser atendidas. Dr. Asdrúbal, delegado titular do lº DP, responsável pelas buscas, informou à reportagem que a chácara onde reside V.H.C. está fechada e não aparenta nenhum sinal de vandalismo, o que descarta a hipótese de roubo residencial. O veículo de propriedade de V.H.C., uma caminhonete branca, com placa de Ponte Alta, não foi encontrado no local.

AS INVESTIGAÇÕES Suspeita-se que avô e neto possam ter sido vítimas de acidente rodoviário. Está sendo averiguada a possibilidade de que o veículo tenha se desgovernado nas muitas estradas vicinais que margeiam os morros da região. Porém, até o fechamento desta edição, nenhum pronto-socorro ou posto de saúde próximo de Ponte Alta registrou qualquer ocorrência que possa esclarecer o caso. O delegado Asdrúbal não descarta também a hipótese de sequestro. Sendo assim, para não prejudicar as investigações, as diligências da polícia serão feitas em caráter sigiloso e a imprensa, conforme solicitação das autoridades, estará momentaneamente impedida de noticiar o andamento das operações.

FALTA DE RECURSOS Esse é mais um infeliz acontecimento que demonstra o total descaso dos políticos do município em oferecer segurança e melhoria de qualidade de vida para nossa população. Além de ruas e estradas malconservadas, a maioria sem asfalto e sem iluminação pública, continuamos com uma polícia ineficiente. São poucas as viaturas e há um número reduzido de homens para combater a
criminalidade, que vem crescendo de modo assustador em Ponte Alta. A necessidade da instalação de novas delegacias, como no bairro do Paiol Velho, sempre serviu de palanque político para candidatos a cargos públicos, como aconteceu na última eleição. Porém, o que se constata é que são apenas promessas que, passadas as eleições, empossados os políticos, jamais são cumpridas. Um verdadeiro desrespeito para com o eleitor de Ponte Alta.

A claridade da manhã bateu em cheio no rosto de seu Vito. Já sem o capuz, ele abriu os olhos e, em seguida, teve de fechá-los rapidamente, piscando muito, sem que ao menos pudesse protegê-los do sol com as mãos. Não sabia se havia dormido horas ou dias. Muito menos onde estava. Ao acordar, ou um segundo antes, pensou que estava tendo um pesadelo. No sonho aparecia deitado no chão de uma casa abandonada. Suas mãos estavam amarradas para trás e se esforçava desesperadamente para soltá-las e proteger os olhos da claridade que ardia como fogo. Ainda piscando muito, sem saber se era mesmo um sonho, seu Vito percebeu, à sua frente, apontado para ele, o cano grosso de um revólver. E quando constatou, de fato, que aquilo não era pesadelo, muito menos imaginação, mal teve tempo de lamentar a própria sorte, pois imediatamente lhe veio à lembrança, pela milésima vez, um nome: Renato. Renato. Era assim que seu Vito gostava de tratá-lo, usando apenas seu segundo nome. Nunca entendeu direito a razão por que seus pais tivessem escolhido chamá-lo de Cláudio Renato. Talvez porque assim soasse mais pomposo, como se os nomes juntos imputassem ao garoto uma identidade mais nobre. Mas ele, ao contrário, tratando-o apenas por Renato, sentia manter com o neto um relacionamento diferente, uma intimidade exclusiva, porque ninguém o chamava simplesmente de... Renato. O homem encapuzado ordenou de modo ríspido que se levantasse. Com o cano do revólver indicou a porta. Quando se levantou, seu Vito percebeu — aliás, sentiu no corpo — a extensão da surra que tomara. Caminhou até a porta com passos lentos, as pernas doíam muito e isso dificultava firmar os pés no chão. Quando o homem encapuzado o empurrou para fora, seu Vito quase perdeu o equilíbrio. Foi forçado a dar alguns passos em direção ao mato que crescia tão desordenadamente como se fosse invadir o esconderijo a qualquer momento. O homem gritou: — Vai, velho. Faz aí as suas necessidades! Ao longo de mais de setenta anos, seu Vito nunca tinha passado por um momento tão constrangedor na vida.

* * *

Sentindo a umidade fria do chão, as mãos amarradas para trás, o vão das tábuas a imprimir marcas em suas costas, Renato era presença constante em
seus pensamentos. Certa vez, de olhos fechados, começou a vê-lo de maneira estranha, muito, muito nítida. Ainda não o havia visto desse jeito: tão perto, a imagem dele tão próxima e presente que, se não estivesse com as mãos atadas, talvez pudesse tocá-lo. Renato caminhava a passos rápidos por uma trilha deserta, por entre uma floresta de árvores gigantescas. Seu Vito se pôs então a segui-lo com os olhos; não poderia se desconcentrar um segundo, precisava acompanhá-lo, ver para onde ia. Depois, pouco a pouco, a trilha por onde Renato seguia foi se alargando e desembocou numa clareira. O sol iluminava a relva florida que crescia por ali. A vegetação era tão uniforme em seu tamanho como se um exímio jardineiro a aparasse todos os dias. Margaridas amarelas, onze-horas, marias-sem-vergonha emolduravam com um colorido especial a imagem do garoto. Via Renato caminhar sobre a relva contornada ao longe pelo paredão denso e escuro da floresta. Ele dava os passos de modo decidido, como se soubesse o caminho, como se tivesse um propósito determinado. Algo então chamou a atenção de seu Vito, que o fez duvidar se aquele que estava vendo em pensamentos era realmente seu neto. O garoto caminhava descalço, os pés nus pisando firme o chão entre as flores. Não se lembrava de ter visto Renato andar descalço nem uma vez. De dia sempre calçava tênis e, à noite, uma sandália de dedo. Na chácara se obrigava a usar as botas de borracha que a mãe comprara especialmente para ,andar pelo quintal. Por incrível que pareça, lembrou seu Vito, nunca vira o neto caminhar com os pés descalços. "Culpa da Luci, minha filha", lamentou. Ela o educara com modos modernos, em que andar descalço se transformara num desafio à saúde, quase uma afronta. Nos seus tempos de menino era diferente, todo moleque vivia descalço. Jogavam bola descalços. Corriam, pisavam sobre pedras, terra, mato, bosta de cachorro e gato, até em espinhos, e nunca acontecia nada, ninguém ficava doente por isso. Sapatos, só para ir à escola ou à missa de domingo. Seu Vito começou então a se recordar dos seus tempos de escola. Ao voltar para casa depois das aulas, a primeira coisa a fazer era tirar rápido os sapatos, libertando os pés daquela prisão. E como era bom, em seguida, ficar esfregando os pés úmidos no cimento áspero do meio-fio. Naquele tempo, de tanto uso, a sola dos pés dos garotos era grossa como couro de boi. Um amigo, um velho amigo de infância — seu Vito lembrou-se dele —, conseguia até apagar cigarro com o pé descalço! Suas unhas, então? Eram sujas e tão duras que cortavam ferro, diziam. E, quando seu Vito se percebeu em devaneios, revendo a infância, a escola, as brincadeiras
de rua e seus companheiros, imediatamente voltou seus pensamentos para a clareira onde tinha deixado Renato com os pés nus. Mas já não havia ninguém. A clareira, agora, não parecia a mesma. O sol tinha ido embora. As flores já não refletiam a claridade da manhã. Acuado como um bicho num canto do barraco, seu Vito se esforçou novamente para rever o neto. Esforçou-se, esforçou-se. Não sabia exatamente há quanto tempo estava preso e até quando conseguiria sobreviver naquele chão frio. Sentia-se fraco, o peito dolorido e uma tosse seca que aumentava mais e mais. Quase teve a certeza de que nunca mais veria o neto, que nunca mais pronunciaria o nome... Renato. Implorou a Deus para que, pelo menos, lhe permitisse sonhar com ele.


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