segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 751 : O MESTRE DOS GAMES

12. Pão com mortadela

Pão com mortadela. Outro dia passaria a pão com mortadela. E seu Vito já não sabia mais desde quando só comia pão com mortadela, acompanhado de um copo de leite. Ah, que saudade da comidinha que ele mesmo preparava na chácara. Coisas simples, sem o mínimo requinte culinário, mas tão gostosas... Arroz branco com dois ovos fritos em cima, salada de tomate e muito azeite, por exemplo. Seu Vito fechou os olhos por um instante. Sim! Sim, o copo de vinho. Como ia se esquecendo? E o que teria de sobremesa hoje? Queijo branco com goiabada cascão. Depois, a sesta na rede da varanda. Pra lá e pra cá, indo e voltando, sentindo levezinha a brisa no rosto, ouvindo o canto dos passarinhos, os pensamentos longe. Só iria acordar lá pelo meio da tarde. Então, era esperar o sol descer um pouco mais, desenrolar a mangueira do poço, ligar a bomba e borrifar água nas plantas. Eta vidinha boa! Também pudera, não era para menos: havia trabalhado desde menino e merecia uma vida digna de aposentado. Ainda bem que fizera a opção pela chácara, pensou. Por ali, onde morava, a vida era simples, mais autêntica e próxima do essencial. Sem os tantos excessos, apelos supérfluos e gastanças de quem vive numa cidade grande. '"Vida verdadeira, minha filha: mais água e menos espuma" — era assim que gostava de definir para Luci a diferença entre morar numa cidade pequena e numa cidade grande. Se não tinha tudo que queria, tinha aquilo de que precisava, graças a Deus. E não precisava de muito para ser feliz. Bastava descobrir no quintal o primeiro broto do ano na jabuticabeira, bastava ver os filhotes de andorinha já impacientes para pularem do beiral do telhado. À noite, assistir ao jornal na TV e ir, aos poucos, tomando uma cachaça aos golinhos, filosofando consigo mesmo sobre as notícias, tirando as próprias conclusões sobre a vida, sobre o mundo. Quem sabe, no dia seguinte, enquanto cuidasse dos pássaros, deixasse cozinhando em fogo brando um feijão-preto com pedacinhos de carne de porco, só para dar um gostinho, e comesse com a alface e o jiló que colheria da horta. Francamente... Não existe coisa melhor do que isso tudo, existe? Ah, sim, existe — seu Vito lembrou-se de pronto. Existe, sim: o telefonema sempre esperado, a voz do neto, do outro lado da linha — "Vô? Posso ir amanhã, vô? Posso passar o fim de semana com o senhor na chácara? Posso?".
— Mortadela outra vez? Eu não aguento! Seu Vito voltou a abrir os olhos ouvindo a mocinha reclamar. — Puta merda! — soltou ela o palavrão enquanto desfazia o embrulho de papel, com o nome da padaria impresso em vermelho. — Também não aguento! — resmungou o parceiro. — Você acha que, na casa dele, aquela baita casa, ele come mortadela todo dia? É um miserável, um pão-duro. Pra gente, só compra isso! Seu Vito previra: mais cedo ou mais tarde, eles mostrariam realmente quem eram. Impossível se fingirem de bons ou maus, dia após dia, fechados dentro de um barraco, olhando apenas para a cara um do outro. A mocinha, pensou seu Vito, talvez fosse a namorada do chefe. E o velho, pelo comentário que fez, poderia ser um vizinho ou até parente da moça. Porém, tinha quase certeza de que os dois tinham embarcado nessa história perigosa um tanto inocentes, achando que seria fácil, rápido, e que ganhariam muito dinheiro. "No fundo, no fundo", pensou seu Vito, "eles estão impacientes, os nervos à flor da pele; por isso, é preciso tomar cuidado e continuar mantendo a postura de inofensivo, de humilde". Se o velho e a mocinha começavam a dar sinais de impaciência até para comer, quem precisava de paciência era seu Vito. Comer outro pão com mortadela não era nada perto da paciência necessária para, lentamente, com muito tato, ir criando alguma cumplicidade com seus carcereiros. Sabia que não devia olhar diretamente nos olhos deles, nem forçar conversas sem sentido, pois tudo poderia se transformar numa tragédia. Porém, o momento certo de agir — ele pressentia — estava se aproximando. — Come aí! Ou vai ficar só olhando o chão? — disse a moça para seu Vito, e depois virou-se para o parceiro, rindo e falando com a boca cheia: — O coitado também não aguenta mais pão com mortadela. Retirando dos dentes um fiapo, continuou falando: — Não pense que vem coisa melhor, porque não vem não; carne, peixe frito, pizza, essas coisas... Já era! Pela primeira vez — seu Vito notou ela lhe dirigia a palavra diretamente, num tom de voz que não parecia tão rude. Seu Vito apenas sorriu e esboçou um brinde, levantando o copo de leite.

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