segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 741 : O MESTRE DOS GAMES

2. Intuição de mãe

Ele e o avô foram dados como desaparecidos. Até então, pouco se sabia sobre eles. Única certeza que havia: em nenhum momento estiveram nos locais onde supostamente poderiam ter estado, e para os quais a mãe de Cláudio Renato telefonara insistentemente. '"Será que sofreram algum acidente?", ela se perguntava. "Será, meu Deus, que foram vítimas de ladrões, de sequestradores, de bandidos?" Esse palpite infeliz ela sentia como intuição de mãe, ainda mais depois de tantos telefonemas que fizera para a chácara do pai ("atendam ao telefone, por favor, por favor, atendam!"). Para o pesqueiro (pois se lembrava vagamente da última conversa telefônica que tivera com o filho e ele mencionara algo sobre o pesqueiro). Também, os cinco ou seis telefonemas para a chácara vizinha, a de seu Olavo (por sorte, o pai informara o número para o caso de alguma emergência). E o vizinho a responder, uma vez mais, que não havia ninguém na chácara. Que, desde cedo, não vira ninguém por lá. — Como calma, André? Como posso ficar calma numa situação dessas? — lastimava-se a mãe de Cláudio Renato, já angustiada, num telefonema internacional para o irmão. — Existem tantos pesqueiros na região, Luci. Vai ver, o pai escolheu justamente um a que nunca havia ido antes. — Mas, André, escute, já liguei para todos os pesqueiros que aparecem na lista! — Luci, calma. Você conhece o pai. Ele pode ter ido a um pesqueiro que não tem telefone. O certo é esperar. Quer fazer uma aposta? Logo, logo eles vão aparecer de barriga cheia, dizendo que foram jantar, naquele tal Rancho do Zico, os enormes peixes que pescaram. Ainda por cima, vão contar mentiras de pescador. Quer apostar? Se o pai de Cláudio Renato não estava preocupado com o filho (apesar dos apelos de Luci, nem ao menos concordou em deixar o escritório para juntos rumarem imediatamente para a chácara), por que então o tio que morava longe, nos Estados Unidos, iria se preocupar? Mas nada neste mundo é capaz de apaziguar o coração aflito de mãe quando ignora o paradeiro de um filho, se tem o pressentimento de que alguma coisa ruim aconteceu.
Assim que terminou o telefonema para André, Luci, por um instante, tentou se controlar. Interrompeu no meio a discagem para a chácara vizinha à do pai, recolocou o fone no gancho, sentou-se na cadeira da cozinha e respirou fundo. Foi até a pia e preparou um copo d'água com açúcar. Depois, subiu até o quarto do filho. Pôs a escada diante do armário que ia até o teto e começou a procurar ali, na parte de cima, o álbum, o álbum com a foto. A foto do filho na chácara, sentado sob a sombra de uma árvore florida, abraçado com o avô. Luci lembrava-se especialmente dessa foto. Ela a tirara no aniversário de setenta anos do pai. Era de admirar como ele se recuperara bem da morte da esposa, apesar de terem vivido juntos quase meio século. Luci e André, por alguma razão, achavam que seria muito difícil para o pai manter o humor, o jeito brincalhão e meio irresponsável de levar a vida, porque, para isso, servia-se do apoio da companheira de tantos anos. Mas bastaram poucos meses para se adaptar à nova vida de viúvo. E lá estava ele, posando para a foto com o seu sorriso largo e generoso, que nem mesmo o bigode farto e agora todo branco, que usava desde os tempos de rapaz, conseguia esconder. Para se recuperar por inteiro, ele se apegara muito ao neto, sobre isso não havia dúvida. Luci precisava encontrar a foto. Uma saudade inexplicável e quem sabe precipitada, de antes da hora, começava a invadir seu coração, apesar de ter visto o filho no último fim de semana e falado por telefone com ele há menos de dois dias. Precisava rever o brilho de seus olhos, olhos de quem mira o horizonte. Rever suas bochechas rosadas, a cara cheia, o cabelo negro e sempre despenteado, que, por mais que brigassem, ele não penteava; era uma luta em vão. Como era em vão insistir para que fizesse exercícios físicos, para que jogasse mais futebol, em vez de só jogar videogame no quarto. Luci sentia também saudades do pai. A mão dele sobre o ombro de Cláudio Renato, ambos bem juntinhos para a pose, os dois que se julgavam, acima de tudo, companheiros de aventuras. Mais do que companheiros, amigos de verdade, confidentes. Impossível esquecer o sorriso do avô ao receber o neto na chácara. E juntos, sem perder um só minuto, percorrerem o quintal: o avô apontando para a árvore que haviam plantado e mostrando o tanto que crescera. O arbusto onde uma sabiá construíra o ninho no emaranhado dos galhos secos. No viveiro, outro ninho, com três ovinhos salpicados de manchas. O avô explicando: eram de tico-tico, os ovinhos da sabiá eram diferentes; logo ele poderia compará-los. De súbito, um bando de canarinhos voando do chão, quase a envolvê-los, e indo pousar na quaresmeira. Assim, os anos foram passando. Cláudio Renato crescendo e se desinteressando naturalmente pela chácara. Chegou o tempo em que já não admirava tanto as flores, nem mesmo os pássaros, e não se importava quando descobria um formigueiro que parecia pedir, como antigamente, para ser
desmantelado sem dó com a ponta de uma vara. Se antes ele queria ir todos os fins de semana para a chácara, agora passava meses sem ir lá. Restavam as férias; porém, ir para ficar, só mesmo nas férias de verão, ainda assim meio a contragosto. Tanto que, dessa última vez, impôs uma condição: só iria se pudesse levar o videogame que ganhara no Natal. O avô concordou, é claro. Para ter o neto ao seu lado, faria tudo que pudesse, até mesmo pedir ao técnico em eletrônica que consertasse a TV do quartinho dos fundos para o neto instalar ali o aparelho. Tentou inclusive aprender a jogar aquele jogo. Mas não conseguia ter a agilidade necessária, e muito menos os reflexos exigidos para disputar uma partida digna. Além de que se sentia meio enjoado com a rápida sucessão de imagens, o som repetitivo e estridente, e acabava achando aquilo uma tremenda perda de tempo. Tudo bem que o neto jogasse, digamos, por algumas horas; mas passar o dia todo de umas férias plenas de sol jogando videogame no quarto era demais. Por isso, insistiu para que fosse com ele ao pesqueiro.

* * *

Quando Luci e o pai de Cláudio Renato chegavam do trabalho e encontravam o filho jogando videogame, ainda de uniforme e sem nem ter feito a lição, gritavam com ele, exigindo que desligasse aquela droga de jogo e fosse tomar banho, para jantar. Cláudio Renato respondia do banheiro, com o chuveiro ligado, que eles também eram viciados em televisão. Que eles não perdiam um dia, um só dia, da novela. A casa então se transformava num verdadeiro campo de guerra, que terminava com o pai esmurrando a porta do banheiro, exigindo que Cláudio Renato desligasse o chuveiro e fosse direto para a cama. No outro dia, a cena a se repetir: o videogame no quarto, os pais na sala diante da TV, e tiro para todos os lados da casa. Nos fins de semana, não era diferente: não havia argumento suficientemente forte capaz de convencer o filho a trocar o videogame nem mesmo pelo futebol, de que antes ele gostava tanto. Quando chegaram as férias de fim de ano, os pais praticamente o obrigaram a passar uns dias com o avô. Foi quando Cláudio Renato impôs a condição de levar o videogame. — Seu avô não vai gostar de ver esse jogo instalado na televisão dele. Se eu fosse você, levava o videogame portátil. — Não jogo com ele faz tempo, pai.
— Cabe no bolso. Não precisa amolar seu avô para instalar o outro na... — Não tenho mais as pilhas. — Eu compro pilhas novas. — Então, eu levo os dois! O pai, por fim, teve de concordar, mas desde que o filho também levasse a bola de futebol.

* * *

Agora, enquanto procurava a foto do filho com o avô, folheando um e outro álbum, como Luci desejou que Cláudio Renato estivesse no quarto, ao lado dela, jogando videogame. Simplesmente jogando videogame. Chegou mesmo a imaginá-lo ali. Que vivacidade! Como era belo quando estava totalmente concentrado. Que disposição para se dar por inteiro ao jogo. Que destreza! O filho levava jeito para tudo. Tudo que fazia, fazia bem-feito. De quem herdara essa capacidade de concentração? Que imagem bonita a do filho; o jeito próprio de movimentar as mãos, os dedos, de levantar os olhos para a tela, vez ou outra mordendo um dos lábios, sorrindo, vibrando e até... gritando um palavrão! Como gostaria que tudo voltasse ao normal, voltasse ao que era antes. Foi quando Luci sentiu uma ponta de arrependimento por implicar tanto com o filho por causa de um simples videogame. Anoitecera. O pai de Cláudio Renato deveria estar chegando do escritório. Mas Luci não sentia a mínima vontade de ligar a TV para assistirem juntos à novela. Precisava encontrar a foto. Não era só por capricho ou por saudade que precisava encontrá-la, mas, principalmente, porque havia tomado uma decisão: assim que o marido chegasse, iriam levar a foto à polícia.



Nenhum comentário:

Postar um comentário