segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 757 : O MESTRE DOS GAMES

20. Um segundo, apenas

A culpa havia sido dele. Ele, o único responsável pela Operação Resgate; o único ali em condições de determinar o momento certo para agir; a única autoridade que poderia ter alterado o rumo dos acontecimentos, e tinha faltado com o dever. A culpa pela tragédia, não havia dúvida, tinha sido dele, só dele. Todos posicionados para a ação, cada qual em seu posto. Tudo exatamente como havia planejado, só esperando sua ordem, e ele, absorto, distraído, olhando para o céu, a atenção desviada por um pássaro, um mísero passarinho que cantava, quando se ouviu o disparo. Antes, o silêncio. Depois, o pássaro. E tiro e susto, como um raio, em seguida. Então, agonia e desespero precipitaram a ação do dr. Asdrúbal, que correu para o barraco seguido pelos policiais. Logo a seguir, a culpa. O sentimento de impotência. O arrependimento. A vontade de fazer o tempo voltar, e não precisava muito: um segundo apenas, meu Deus! Um segundo antes de se desconcentrar, quando olhara para o alto tentando localizar entre os galhos da árvore o pássaro com seu canto instigante, repetitivo, como se dissesse algo, chegando cada vez mais perto. Pois, se não tivesse perdido aquele precioso segundo, teria evitado a tragédia. Teria ordenado a invasão do esconderijo a tempo. Teria visto quando a porta do barraco, antes fechada, fora aberta. Um tiro. E basta um tiro para pôr tudo a perder, para pôr um fim em tudo. Inexorável fim. O trabalho, o esforço, as alegrias, a esperança, a vida. Tudo. Nada mais a fazer. Se fizesse voltar o tempo... um segundo apenas, antes do disparo... Na delegacia, na hora de escolher a palavra que faltava para terminar o relatório sobre o sequestro — palavra que melhor expressasse a surpresa que ele e os policiais tiveram quando "estouraram" o cativeiro —, o delegado ficou em dúvida. Novamente reviu a cena: o silêncio, o canto, o tiro. Logo em seguida, sua ordem para que invadissem o esconderijo: armas apontadas, empurrões, gritos, confusão. Paralisação e desespero, como se todos tomassem um choque elétrico.
O dr, Asdrúbal não conseguia decidir pela melhor palavra para o relatório. Ele pensou e pensou. Resolveu então consultar o dicionário: surpreendente, inesperado, inopinado, extraordinário, inacreditável, imprevisível... — Esta! — decidiu. — Imprevisível. Escreveu no relatório: imprevisível, e terminou a frase. Hesitou por um segundo. Imprevisível? Não seria uma palavra forte demais a ponto de desmerecer todo o planejamento da Operação Resgate, comprometendo em consequência sua imagem perante o secretário de segurança? Pensou e pensou. Ia novamente abrir o dicionário, mas desistiu. "Que se dane!" Não encontraria palavra melhor.



Releu o final da frase: "... imprevisível para ambos os lados". Não era exagero. Imprevisível para o lado dos bandidos, pelo susto que tomaram com a invasão repentina, abrupta, da polícia, jamais esperada; tão de repente como o estouro de uma boiada, quando ele e os colegas entraram, armas em punho, correndo, gritando. E imprevisível também para eles, policiais, pelo que esperavam encontrar no esconderijo e o que realmente encontraram. O dr. Asdrúbal pôs o ponto-final no relatório. Agora era encaminhar para o secretário e, claro, esperar pelas críticas, reclamações, broncas, o pior. Decidira, enfim, por relatar a verdade, custasse o que custasse. De fato, encontrar o garoto no barraco fora totalmente imprevisível. Se o secretário o questionasse sobre o fato, exigindo dele que reconhecesse a falha de planejamento da Operação Resgate, o perigo que todos tinham corrido de ser mortos, porque, simplesmente, não conseguira prever que o garoto pudesse estar no esconderijo, então o que responderia ao secretário? Como inventar uma justificativa se, realmente, o erro da operação estava nesse, nesse... imprevisível? Justificar repetindo a versão contada pelo garoto, uma história totalmente improvável, sem pé nem cabeça, jamais! Se ele mesmo não acreditava na história, o Secretário acreditaria? Nunca! Melhor assim: relatar a verdade e arcar com as consequências. Claro, viriam as críticas, reclamações, até afastamentos. Assumiria perante o secretário a culpa pelo disparo feito pelo chefe dos sequestradores. Se teve uma vítima, a culpa foi dele, pelo mau planejamento da operação. Enfim, enquanto mentalmente ia experimentando desculpas para dar ao secretário, e acompanhava a impressão das páginas finais do relatório, o dr. Asdrúbal foi, aos poucos, se conformando com a situação. "Que se dane o secretário!", resmungou consigo mesmo, — Que se dane a imprensa! — deixou escapar, quando foi avisado de que o repórter de O Diário de Ponte Alta queria agendar uma entrevista.




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