segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 752 : O MESTRE DOS GAMES

13. Bife com fritas

Renato olhou para o game em suas mãos. O tempo passando rápido, rápido demais. E quanto mais o tempo passava — ele sentia mais o avô corria perigo. Precisava agir depressa, depressa! Sentado, embaixo do parapeito da janela, depois de ter ouvido o que antes havia sido ave e havia sido cão falarem dele, Renato pensou que tinha dois... dois não, corrigiu-se a tempo: três urgentes problemas a resolver. Sentia-se meio tonto. O estômago doía de fome. Tentou organizar melhor os pensamentos. A primeira urgência, o maior problema de todos: salvar o avô. Mas, para salvar o avô, antes precisava de algo mais urgente ainda, que era — levantou o segundo dedo da mão para ajudar na concentração — o segundo grave problema: precisava comer, simplesmente comer para não morrer de fome, para recuperar as forças. O terceiro problema — que já nem sabia mais se era problema ou solução — era decidir se deveria usar o game para resolver os dois problemas anteriores. Pronto. Ficou contente. Nem tanto pela conclusão a que chegara, mas por ter conseguido concluir um raciocínio, já que sua cabeça parecia querer voar e voar, e nem mesmo acreditava se tudo aquilo estava acontecendo a ele. Até agora, bem ou mal — esforçou-se para continuar concentrado —, nem tudo parecia tão ruim assim, concluiu. Não estava ruim porque não havia usado o controle desde a encruzilhada? Se tivesse usado o controle, teria acontecido de aquele cão e aquela ave se transformarem e falarem dele? Se usasse o controle agora, iria desfazer o que estava acontecendo? Iria zerar tudo e teria de começar numa outra fase, em outro lugar, do zero? Uma coisa era certa: em algumas situações, ele até poderia decidir se usaria ou não o controle; porém, em outras, de risco iminente, como na praia e no avião, era como se jogassem com ele, como se ele fosse o herói, o herói dos games, mas com o controle nas mãos de outro. Sentiu como se a cabeça estivesse girando, os pensamentos dando voltas, outra vez, outra vez. Instintivamente se levantou para olhar pela janela. Mas não havia mais ninguém lá! Como era possível? Percorreu com os olhos toda a extensão da casa e voltou a fixar o olhar na mesa. Ela estava diferente do que era! Nela, agora, uma toalha branca e um prato virado de cabeça para baixo. De um lado do prato, o garfo. Do outro, a
faca. Na frente, um copo cheio do que parecia ser laranjada. Renato fechou os olhos. A dor voltou mais forte ainda. Virou-se e deixou seu corpo deslizar outra vez pela parede, até cair sentado sob o parapeito da janela. Voltara a sentir a dor. Uma dor tão intensa na boca do estômago que o fez largar o game no chão e, com as mãos, massagear a barriga. Um aroma muito especial começou a chegar até ele. Inebriante, tentador, irresistível. Como se a comida tivesse ficado pronta e fosse posta à mesa. Será que estava delirando?, perguntou a si mesmo. Renato levantou-se rápido e olhou direto para a mesa. Era o que imaginara: a tigela de arroz ao lado da de feijão. Na bandeja prateada, tomate e alface. Mais no canto, o que era aquilo? Bifes! Bifes acebolados! Renato quase gritou de felicidade. Sim, era dali que vinha o cheirinho bom que quase o matara de fome. "Bifes acebolados", repetiu para si em voz alta. Ao lado dos bifes, noutra bandeja de alumínio, a outra coisa de que mais gostava de comer na vida, além de bife acebolado: um monte de batatas fritas! Quando Renato deu por si, já havia pulado a janela, sentado à mesa, desvirado o prato e enchido até o máximo de arroz, feijão, dois grandes bifes, e faltava ainda arranjar um cantinho onde colocar as fritas,

* * *

Ufa! E foram três pratos cheios. Renato comeu rápido demais sem se importar em mastigar direito. Engolia as garfadas ao mesmo tempo que vigiava tudo ao seu redor, do mesmo jeito que os pássaros faziam quando pousavam no comedouro da chácara do avô, assim como os pombos na praça mordiscando o milho do chão; sempre alertas, desconfiados, o olhar atento, como que aguardando pelo pior. Se sua mãe estivesse ali, certamente ralharia com ele. Primeiro, por comer depressa, engolindo a comida sem mastigar, porque iria fazer mal. Segundo, pela falta de educação, por comer demais na casa dos outros. "Três pratos! Que vergonha, Cláudio Renato!" — quase podia ouvir a bronca da mãe. "Mas, mãe, a senhora não entende. Imagine a minha fome, mãe?!". Entre uma garfada e outra, Renato cuidou de vigiar a porta, que da janela, pelo lado de fora, não tinha como avistar. Concluiu que eles só poderiam ter saído por ela.
Renato levantou-se da mesa. As tigelas, o prato, o copo, vazios. Sentia a barriga quase a explodir de tão cheia. Recolheu com o garfo um resto de comida da toalha e despejou no prato. Em sinal de agradecimento, achou que seria educado juntar as bandejas, as tigelas, o prato, os talheres e empilhá-los dentro da pia, como sua mãe ensinara. "Está vendo, mãe?". Feito isso, deu um tapinha de leve perto do umbigo e, sem querer, deixou escapar um arroto — "Ih! desculpe". Por um instante, a sensação boa de quem se sente restabelecido, forte e pronto para a luta. Mas, e esse sono agora? Esse sono que sentia, fora de hora? O maior sono do mundo! Não, não podia ser normal. Mal conseguia continuar em pé. Isso não podia acontecer. Porém, precisava dormir, necessitava de cinco, dez minutos de sono que fosse, e voltaria a ficar bom. Renato chegou a pensar que haviam posto algo naquela comida. Algum pó, alguma poção, porque nunca sentira tanto sono em sua vida. Sim, era isso! Nos filmes, tinha visto muitas vezes cenas assim. "Não é porque eu comi demais, não, mãe... Não é!". Mas, se dormisse, sabe-se lá o que fariam com ele. Foi então que, num misto de coragem e confusão mental, Renato tomou a decisão: o melhor a fazer era abrir logo aquela porta ao lado e enfrentar o que tivesse de enfrentar, antes que caísse de sono. Talvez porque o sono fosse tamanho, quando Renato pôs a mão na maçaneta, já meio tonto e em devaneios, os pensamentos fugindo, descontrolados, imaginou por um momento se por trás daquela porta encontraria de fato o quarto de dormir da casa. Só e tão somente isso: um quarto para fazer a sesta. E quem sabe esse quarto fosse fresquinho e nele, num canto, houvesse uma cama macia com lençóis limpos e cheirosos?... Há quanto tempo não dormia numa cama de verdade? Hesitou um instante em girar a maçaneta, e nesse momento lembrou-se do game portátil. Com a fome, esquecera-se dele lá fora, na grama, perto da janela. A fome o fizera esquecer-se de tudo e agora o sono invencível o forçava a abrir logo aquela porta, antes que caísse no chão. Reuniu todas as forças que tinha para continuar acordado mais um segundo. Tentou se concentrar, lembrando-se dos problemas que enumerara para resolver. Mas seus joelhos se dobravam. Os olhos fechavam. Jamais conseguiria voltar até a janela para pegar o game. E se precisasse dele? Só mesmo algum feitiço na comida para sentir o que sentia. Foi esse o último pensamento de Renato ao girar a maçaneta.
Lá estava ela! A cama macia com lençóis brancos e o cheirinho de coisa limpa. Havia ainda dois travesseiros enormes pedindo que ele deitasse, urgente. Renato se jogou de onde estava, os pés sujos, encardidos, contrastando com os lençóis limpos. Uma brisa fresquinha soprava de algum canto. Um segundo depois e já estava mergulhado no mais profundo sono.

* * *

Bastou pouco tempo para Renato identificar as vozes que pareciam vir das profundezas. — Ótimo. Ele agora sonha. — Graças à sua habilidade essencial, tudo está acontecendo naturalmente. — Sim. Na verdade, a habilidade consiste em proporcionar tal prazer à mesa que depois o faça sonhar um sonho dirigido. Mas os méritos não são meus, são dele, por se deixar levar pela intuição. — Ele ainda precisará de nós? — Não creio. Talvez, no momento decisivo, o Mestre dos Jogos nos convoque. Mas a sua coragem, o bom-senso e raciocínio rápido o fizeram merecedor do bônus. Os Emissários Voadores, tanto o pequeno pássaro como o inseto azul, já cumprem suas missões, cada qual numa frente. Quando acordar, ele sentirá o peso da responsabilidade, mas aposto que a determinação em encontrar o avô o levará a fazer o que deve ser feito, o levará a vencer o próximo desafio, o mais difícil de todos. — Se é o mais difícil de todos, Guia das Trevas, será então o combate com ele mesmo! — Sim. Mas vamos deixar que ele descanse e sonhe.

14. Tico-tico

Assim que terminou de comer o sanduíche, seu Vito fez o sinal da cruz. — Cruz-credo! — espantou-se a mocinha. — Ele agradece a Deus até por pão com mortadela! Está na pior, hein? — O homem tá certo! — exclamou o parceiro. — Por acaso santo não come mortadela? De pinga, eu sei que santo gosta. Toda vez, antes do primeiro gole, sempre ofereço um pouquinho para o meu santo... Seu Vito, sentindo o ambiente mais amistoso, sorriu e perguntou se poderia recolher as migalhas que tinham caído no chão. — Nossa! Tá ainda com fome? — debochou a mocinha. — Fica calmo aí, velho, que na janta tem mais pão com mortadela. — Terminou de falar e deu uma risada, a boca escancarada. — As migalhas não são para mim, são para o meu amigo. Na verdade, nosso amigo. — Amigo? Que amigo? — O parceiro levantou-se rápido, empunhando a arma. — Quem tá aí? — gritou. — Calma! — disse rindo a mocinha. — É tanta mortadela que já engordurou os seus miolos? Não tem ninguém, não! — Pediu ao parceiro que abaixasse a arma e voltasse a se sentar. — As migalhas... Posso? — seu Vito tornou a perguntar. E, com todo o cuidado do mundo, o mais lentamente possível, ensaiou um gesto de quem iria se agachar para colhê-las. — Todo dia o nosso amigo tem vindo nos visitar, vocês vão ver... Com licença? Seu Vito continuou agachado recolhendo com as mãos as casquinhas de pão. Recolheu as que tinham caído embaixo dele, depois pediu permissão à mocinha para recolher as que estavam perto dela. Finalmente, recolheu as migalhas que haviam caído do pão, do lugar onde o parceiro dela estava. As migalhas dos sanduíches de todos esses dias quase encheram a palma da sua mão. Pediu educadamente se poderia levantar e chegar até a janela. Janela, não. Um quadrado mínimo com os vidros quebrados; na verdade, um pequeno vitrô. A única entrada de luz de todo o barraco. Seu Vito colocou sobre o batente o punhado de migalhas. Depois, voltou a
se sentar no chão, no lugar de sempre, com as costas apoiadas na madeira, as mãos para trás, e disse: — Agora é só ter um pouco de paciência e esperar pela ilustre visita do nosso amigo. Nem bem se passaram cinco minutos e um tico-tico pousou no vitrô. Saltitante de alegria, o topetinho empinado, foi devagar, o olhar desconfiado, acercando-se das migalhas. Parecia até sorrir de alegria ao bicar a comida, atento. Desde quando haviam lhe tirado o capuz e desamarrado suas mãos, seu Vito notara a presença do pássaro no vitrô. Presença que vinha se intensificando à medida que o chão do barraco ia ficando coberto por casquinhas de pão. — Que lindo! Ai, que lindo! — exclamou a mocinha. — Que pássaro é esse? — Pardal — respondeu o parceiro, mirando o passarinho com o revólver. — Na verdade, é um tico-tico — corrigiu seu Vito. — Vejam como ele anda aos pulinhos. E o topetinho empinado mostra que é um macho. — Isso mesmo! Topete empinado é coisa de homem metido a macho, metido a besta — interveio a mocinha. — Mas esse aí não é nenhum machão. Ao contrário — disse pausadamente seu Vito. — Não sei se você sabe, mas, na época do acasalamento, o tico-tico macho ajuda muito a fêmea. É um pássaro solidário. O casal precisa ser bastante unido para fazer o que fazem. O macho divide o trabalho de fazer o ninho, a fêmea bota os ovos e depois ele divide com ela o trabalho de chocar e alimentar os filhotes, mesmo se um dos filhotes não é dele. — Como assim... não é dele? Vai me dizer que no mundo dos pássaros também existe essa de traição, de pular a cerca? Passarinha que põe chifre no passarinho? Nossa! — Não, não é bem o que você está pensando. O tico-tico é um passarinho especial. É um dos primeiros a acordar e um dos últimos a dormir. Um dos poucos pássaros que cantam tanto de dia como de noite. Acho que sofre de insônia. — Espera aí! Mas que negócio é esse de criar filho dos outros? A mocinha estava interessada na conversa, notou seu Vito, e isso era bom, muito bom. Sentiu que não seria difícil nascer dali alguma cumplicidade. Porém o parceiro, ao seu lado, embora ouvisse a conversa, fingia não prestar atenção, continuando a manter os ares de carcereiro, com a arma em punho, vez ou outra mirando o pobre do tico-tico.
Seu Vito perguntou a ela: — Você conhece um pássaro chamado chupim? — Não, nunca tive a honra de ser apresentada a nenhum. — O chupim — foi explicando seu Vito — é um pássaro preto que tem quase o dobro do tamanho de um tico-tico. Acho que você já deve ter visto um. É um parasita de ninhos. Isso quer dizer que ele não se dá ao trabalho de construir ninhos; simplesmente põe seus ovos nos ninhos dos outros, e geralmente escolhe o ticotico para vítima, Como também não se dá ao trabalho de chocar e, o que é pior, de alimentar o próprio filhote depois que nasce. Ele transfere toda a responsabilidade para os pais postiços. — Que folgado, hein? — É verdade. E o tico-tico cria o filho adotivo como se fosse dele, com o maior carinho. Seu Vito apontou o dedo em direção ao pássaro, que já terminava a refeição de migalhas no vitrô, e disse: — Vocês precisam ver o esforço que esses bichinhos fazem para encher a barriga de um filhote de chupim. É o dia inteiro pondo comida na boca. O filhote de chupim, além de ser um bebezão chorão, bem maior do que um tico-tico adulto, fica o tempo todo piando, chamando a atenção para si, como se tivesse a maior fome do mundo.

De repente, ouviu-se um estrondo no barraco, espantando o pássaro para longe. O chefe irrompeu porta adentro empunhando a arma, o gorro de lã puxado até o pescoço. Na outra mão, um jornal dobrado.


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