segunda-feira, 23 de abril de 2018

T1 N° 746 : O MESTRE DOS GAMES

7. O acaso

Renato se viu, então, diante de uma clareira. Depois que decidiu seguir pelo lado leste da encruzilhada, depois do que pareceu ter sido um arco-íris sobre a sua cabeça, chegou à clareira. Imediatamente pensou que sua decisão tinha sido acertada, pois estava num lugar muito diferente de tudo que havia visto antes. Por um momento, enquanto caminhava apressado por entre as flores que cresciam baixas colorindo a trilha, teve a impressão de que estava sendo vigiado. Parou de repente e olhou ao redor; os dedos no controle do game, prontos para um movimento rápido. Deu mais alguns passos, parou e olhou subitamente para trás, como fazem os detetives nos filmes: não, ninguém por ali o espreitava, era apenas impressão. Nada além das flores ao redor, balançando suavemente com o soprar do vento, para lá e para cá. Nada além das cores delicadas e ondulantes, como num balé mágico a implorar audiência. Ah, como gostaria de estar naquela clareira ao lado do avô e desfrutar com ele a beleza da paisagem. Como o avô iria gostar de ver todas aquelas flores juntas, sentir o perfume, ver os pássaros sobrevoá-las. Como gostaria de mostrar ao avô o local mágico que encontrara. Mas não havia tempo. Não podia permanecer ali ou em qualquer lugar que fosse por mais de um segundo. Precisava, antes, encontrar o avô. Precisava caminhar o mais rápido possível. Seguiu pela trilha que atravessava a relva em toda a sua extensão. De repente, a sensação de que estava sendo observado voltou a se intensificar. Olhos que o vigiavam desde a mata. Mas, por mais que tentasse, não conseguia localizá-los. Com todo o cuidado do mundo, com firmeza, continuou a cruzar a clareira, quando começou a sentir um cheiro diferente, que não parecia ser só o do perfume das flores. Talvez um cheiro de comida. Comida sendo preparada, pensou consigo mesmo. Sim, sim, poderia ser! Um cheirinho bom de feijão no fogo. Um aroma tão inebriante que o fez lembrar de sua casa e até ouvir o barulho ritmado da panela de pressão. Porém, a fome era tanta que poderia estar apenas imaginando, tal como acontece com as miragens no deserto, pensou. Há quanto tempo não comia nada além de bananas que amarelavam nos cachos e uma ou outra fruta que ia encontrando pelo caminho? Ninguém era capaz de imaginar a fome que sentia! Renato tentou se deixar conduzir pelo cheiro. Mais à frente a clareira terminava e voltava a dar lugar ao mato denso. Procurou por um local onde fosse mais fácil penetrar na mata. Com muito cuidado, decidia onde colocar os pés
para que um espinho ou, pior, uma cobra, uma aranha, ou o que quer que fosse não o surpreendesse. Perdera um pé do tênis ao se livrar do ninja, e tivera que se desfazer do pé que restara para facilitar o equilíbrio. Agora, porém, o tanto que correra, o tanto que já caminhara descalço, fizera que desse passos mais decididos. As solas dos pés já não doíam como antes. O cheiro parecia cada vez mais intenso. Foi então que uma cor vermelha começou a se destacar entre o verde-escuro da mata. Renato localizou o telhado não muito longe de onde estava, num declive, na encosta de um morro que se descortinava bem à frente. Apressou o passo esperançoso, mas, ao mesmo tempo, com cautela. Tudo parecia calmo. Chegou a pensar que jamais alguém escolheria um lugar assim para morar, longe de tudo. Aguçou ainda mais os sentidos, os dedos nas teclas do game, atento para qualquer emergência. Sim, era uma construção pequena, inacabada, cercada de mato por todos os lados. E era tudo. Como alguém poderia viver num lugar daqueles? Renato podia ver a chaminé e a rala cortina de fumaça subindo em mechas e se desfazendo no céu. E que se desprendia (a fome aguçou sua imaginação) do feijão que cozinhava lentamente num fogão a lenha. Era a prova que faltava para se certificar de que realmente morava alguém ali, mas ele precisava ser cuidadoso. Por isso continuou na espreita, agachado entre os arbustos, sem saber como agir. Foi quando concluiu que aquele era um esconderijo perfeito. De repente, a porta se abriu. Em seguida, Renato viu surgir um cão, um enorme cão rajado. Tinha a cabeça tão grande, tão grande, que parecia duas. O cão atravessou a soleira da porta e parou, atento. Levantou as orelhas, que em seguida se aprumaram em linha, e começou a farejar o ar em sua direção.

* * *

Enquanto o cão se aproximava perigosamente, Renato continuou quieto, em seu canto. Paralisado. Por alguns segundos, prendeu a respiração para não fazer nenhum barulho. E, quando o cão já estava a poucos metros, farejando o ar, fuçando o chão aqui e ali à procura de algo, Renato ajeitou melhor o controle e pensou que tudo que tinha a fazer, o que lhe restava fazer naquele momento, era simplesmente deixar que acontecesse o que tinha de acontecer. Lembrou-se de ter aprendido com um samurai, num dos poucos livros que lera até o fim (pois gostara muito dele), que tomar a iniciativa num combate,
surpreendendo o adversário, quase sempre é a melhor tática. Por outro lado, saber esperar o momento certo para agir é também um modo eficiente de lutar. O importante é ter o domínio da situação e fazer a escolha certa. Quem dita se esta ou aquela conduta é a melhor para um determinado combate não deve ser ninguém mais do que o próprio lutador — o seu coração, a sua intuição. "É preciso aprender a confiar na intuição como sendo um Deus, um Deus interior", lembrou-se do ensinamento do samurai. E o coração de Renato pedia que ele continuasse quieto, esperando, para ver no que daria aquilo tudo. O cão continuava a farejar bem à sua frente. Embora ele fosse chegando cada vez mais perto, a ponto de eliminar qualquer chance de fuga, Renato manteve-se imóvel. Nada de sair correndo, decidira. Então o acaso veio em seu socorro. Logo acima da cabeça de Renato, entre os galhos da árvore alta, ouviu-se um estrondo. Em seguida, o som de folhagem se agitando como se uma ventania forte soprasse somente ali, na ponta daquele galho. Ele instintivamente olhou para cima: de onde vinha o barulho? Viu pousar a ave gigantesca. Percebeu, nitidamente, que era uma estranha forma de ave, como nunca havia visto. Com todo aquele tamanho, o de uma pessoa, ou quase, como conseguia voar?

Sua plumagem era multicolorida. A cauda longa, prateada, e em torno do pescoço, como um colar de várias voltas, a penugem de um vermelho vivo. Um penacho amarelo, como um topete despenteado, caía sobre a sua cabeça. Os olhos redondos, inquisidores, contornados por uma auréola branca. Ainda que fosse uma ave enorme, muito maior do que um galo, um peru, uma avestruz ou um condor, tinha uma agilidade incrível para seu tamanho. As pernas compridas, como as das cegonhas, equilibrando-se sobre o galho que cedia ao seu peso, como se fosse partir. Assim que Renato avistou a ave no alto, reflexo contínuo, a ave também o localizou no chão, escondido entre os arbustos. Num instante: olhos nos olhos! Um instante que pareceu durar uma eternidade. Então se lembrou da presença do cão: a baba a escorrer da boca escancarada, os olhos vermelhos, o pelo eriçado — e o cão também olhava para cima, na direção da ave. Renato pensou que a ave que pousara na árvore — ou o que quer que aquilo fosse —, naquele momento, dava a ele a chance de se livrar do cão. Porque, naquela confusão de olhares e de galhos se agitando, ele poderia fugir, correr, e pressentia que jamais seria alcançado. Porém, uma confiança cega, uma vontade inexplicável de se deixar ali, apesar do risco e do medo, foi aos poucos invadindo o seu coração. Uma simples e inconfundível vontade de ficar, uma calma infinitamente maior do que a vontade de fugir. Olhou novamente para o cão, que agora emitia uivos estranhos para o alto e parecia ter se esquecido dele, ali, escondido. Então presenciou algo que jamais iria esquecer no resto de seus dias: o cão, aos poucos, foi mudando de fisionomia. Foi se desenhando um largo sorriso onde antes era a boca enorme, que, em vez de latidos ou uivos, exprimia uma espécie de ruído, de canto, num ritmo lento que parecia dizer: — Oh!, Fênix Celestial. Sinto-me honrado com a sua visita. Não! Não podia acreditar no que estava vendo e, muito menos, ouvindo! Renato piscou os olhos várias vezes. Como? Um cão, que já não é mais cão, falar com uma ave? Será que, sem perceber, havia acionado o controle do game por engano? Ficou mais surpreso ainda ao ouvir a estranha ave dizer: — Olá, Guia das Trevas. Há quantas eras não nos vemos! Quando falava, o penacho amarelo movimentava-se no ritmo das palavras que sibilavam numa espécie de gorjeio: — Você bem sabe, Guia das Trevas... De longe, muito longe, sente-se o
aroma de sua comida, que é o seu talento. Ele atrai, é convidativo. Posso sentir que não perdeu, com o passar do tempo, sua habilidade essencial. Enquanto ouvia aquele diálogo absurdo, Renato pensou estar sonhando. A ave continuou: — Desta vez vim com uma missão secreta e temos que ser rápidos. O Mestre dos Jogos pede a nossa ajuda. — Por que o Mestre escolheu a nós? — Porque aquele que necessita de nossos préstimos ama os meus irmãos alados, como também ama os seus irmãos canídeos. Onde mora, cuida deles como verdadeiros filhos. Mas ele é um velho e corre perigo mortal. É chegada a hora de retribuir o carinho e a consideração que tem para com todos nós. — Estamos sós nesta missão, Fênix Celestial? — O Mestre, se for preciso, irá convocar a ajuda de outros membros da confraria. Fomos escolhidos também porque nós, as aves, acordamos cantando todas as manhãs, e voamos alto fazendo a união da terra com o céu. Essa é a esperança do Mestre para com o velho e, de resto, para com os homens. E você, Guia das Trevas, o melhor amigo do homem, por ter por ele um amor que não exige nada em troca. Talvez consiga guiar um jovem através da sorte e dos azares do destino, para que cresça também nos jogos da vida, aprendendo a fazer as escolhas certas e se transformar em Mestre. Por tudo isso, fomos escolhidos. Vamos, o que está esperando? Convide-me logo a descer desta árvore e a sentar à mesa em sua companhia, para que eu possa responder às perguntas sobre a nossa missão e colocá-lo a par dos acontecimentos. Aquilo era demais! Muito mais do que incrível. Renato nunca presenciara nada igual antes e duvidou de que estivesse realmente acontecendo. Quem, com exceção do avô, iria acreditar quando contasse? Nem mesmo seu tio André, que gostava de jogos e sempre falava com ele sobre a existência de coisas estranhas, iria acreditar. Em meio a tanta incredulidade e dúvidas, Renato lembrou-se do game em suas mãos. Ah, sim! Era isso. O jogo, supôs. Uma nova fase que havia começado! Conferiu o mostrador:
Ora! Bastava então apertar uma das teclas, qualquer que fosse, para a direita ou para a esquerda, e provocar uma mudança no ambiente, no cenário,
em tudo. Apertar uma das teclas e, com certeza, reverter o rumo dos acontecimentos. Fazer a ave desaparecer, ou a ave não ser mais ave. Fazer o cão voltar a ser cão de verdade, e não um... um o quê? Algo que conversa com uma... ave?! Renato estava prestes a usar o controle, havia mesmo se decidido. O dedo já estava sobre a seta para cima, mas, sem compreender bem o motivo, desistiu. Afinal, para quê? Por que não se deixar embarcar naquela história maluca? Além de que, por enquanto, não existia nenhum motivo para usar o controle. Não! Não se sentia ameaçado por ninguém, por nada. Ao contrário, desconfiava, tinha quase certeza, de que tanto o cão como a ave sabiam da sua presença ali, e pouco se importaram com ele. E assim, mesmo que não soubesse o melhor a fazer, ou se estava se arriscando demais, decidiu continuar quieto, escondido entre os arbustos, simplesmente esperando como seu coração mandava. O que tivesse de acontecer, que acontecesse.


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