24. Prótons e elétrons
Quando acabaram as férias e Cláudio Renato já havia voltado às aulas, o avô ligava da chácara para ele, sempre nas noites de sexta-feira, um tanto saudoso, perguntando como iam os estudos e evitando tocar no assunto de se verem. Muito embora ele sentisse saudade do avô e saudade, inclusive, da chácara — como nunca sentira antes —, as circunstâncias familiares impostas pelos pais não permitiam que estivessem juntos. Sua mãe sofria, é claro, com o distanciamento forçado. O avô também sofria. Mas, para ambos, tornara-se uma questão de honra não ceder, cada qual muito orgulhoso e magoado, e muito certo de seus motivos. — Vô, e o joelho, como está? — Melhor, Renato, bem melhor, graças a Deus. Ainda dói um pouco quando fico muito tempo em pé, como ontem, que cismei de ajudar seu Lindson a cortar a grama. Mas... eu liguei para saber de você. Como vão as coisas, companheiro? Me diga: e a escola, foi bem nas provas? E o game? Tem jogado muito? — Não, vô. Do outro lado da linha, sem conseguir disfarçar a saudade, o avô disse: — Sabe, Renato, toda vez que entro no quartinho dos fundos, lembro-me de você, sentado no chão, entretido com seus jogos...
Se antes, só de ele ter o game nas mãos, todos iam contra, reclamando, insinuando que perdia tempo, que estava se viciando, que deveria estar fazendo algo mais importante na vida do que ficar apertando teclas, hoje o avô e até mesmo os pais pareciam ter deixado a implicância de lado. Tanto que, em alguns momentos, davam a impressão de que gostariam de vê-lo jogando, os olhos grudados na tela da TV. Justo agora que ele já não sentia mais nenhuma vontade
de jogar, não sentia vontade sequer de pegar o game na estante. O mais triste é que tinha certeza de que ninguém havia acreditado nele, na história que contara sobre o game portátil. Nem seu pai nem sua mãe acreditaram, muito menos a polícia, por mais que jurasse e repetisse mil vezes tudo como realmente havia acontecido, sem omitir nada. Nem mesmo Raul, o melhor amigo da escola e companhia frequente para os jogos — o único colega a quem resolveu contar tudo, nos mínimos detalhes. Enquanto contava a história, reparava que Raul fazia a cara mais fingida do mundo de que acreditava nele. A incredulidade foi total, com exceção do avô e, em parte, do tio André. Tio André, num longo e-mail que lhe enviara, tentou explicar a ele uma teoria cada vez mais aceita da Física Quântica: a probabilidade de os elétrons, partículas que constituem os átomos, estarem em outra dimensão quando não são cientificamente observados circundando os átomos das coisas presentes na dimensão em que nos encontramos, a que chamamos de vida real. Embora as explicações de tio André fossem um tanto confusas para Cláudio Renato, despertaram grande curiosidade nele, a ponto de se interessar pelo assunto e querer saber mais a respeito, pois julgava instigante compreender aquelas ideias. Havia interesse também porque Cláudio Renato começava a questionar a si mesmo se, realmente, tudo aquilo acontecera ou, como o médico afirmara, era a mais pura imaginação. — Não, vô, eu não tenho jogado. Agora uso mais o computador. Estou fazendo umas pesquisas sobre átomos na internet e tenho trocado e-mails com o tio André sobre isso. Por falar em pesquisa, vô, lembrei-me da história que o senhor contou sobre o gavião. Achei umas coisas legais sobre eles e imprimi um montão de páginas que vou levar... Não, não... que vou enviar pelo correio para o senhor ler.
* * *
Naquela noite de sexta-feira, assim que terminou a conversa com o avô e pôs o fone no gancho, Cláudio Renato foi até a estante. Olhou demoradamente para o seu game portátil. Lá estava ele dentro da própria caixa, bem em cima do livro sobre o samurai. Na verdade, o game deixara de ser um objeto para Cláudio Renato. Deixara de ser um jogo. Era como se perdesse sua utilidade prática para se transformar numa espécie de símbolo.
Desde o dia em que voltara para casa, depois que a polícia deu por encerrado o caso do sequestro, não tocara mais nele. A última vez foi nesse mesmo dia, em seu quarto. Lembrou que chorava muito, sem saber se era de alegria por estarem salvos ou de tristeza por tudo que acontecera. Ainda com lágrimas nos olhos, o game nas mãos, estranhou o jogo não ter sido zerado, uma vez que tudo terminara. Cláudio Renato retirou as pilhas do compartimento, envolveu o game com o plástico-bolha e o colocou cuidadosamente na caixa, como se estivesse se despedindo dele para sempre. Então, era como se o game passasse a viver ao seu lado, não mais como um jogo, mas como um companheiro. Um amigo, por quem mantinha uma vigilância amorosa. Um talismã, que guardava um significado secreto só decifrável por ele próprio. Talvez tenha sido o telefonema do avô naquela noite, ou outra razão inexplicável vinda bem de dentro do coração, que fez que tivesse vontade de tirálo da caixa, não para jogar, mas apenas para contemplá-lo. Cláudio Renato recolocou as pilhas e acionou o botão on. Quantas vezes ouvira aqueles sons da máquina se armando, quantas vezes? Start, Select... Pronto! Lá estava a tela pulsando colorida, convidativa. Acima, no canto esquerdo, ainda o registro salvo do último movimento:
Antes de dormir, Cláudio Renato lançou um olhar triste para a cama ao lado. A cama vazia que seu avô ocupara enquanto se recuperava do ferimento no joelho. Demorou para pegar no sono, e teve o pesadelo. Sempre ao acordar, tinha a sensação de que ele se repetira uma vez mais, com todos os acontecimentos medonhos que tinham envolvido o sequestro.
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