O chefe jogou com raiva o jornal sobre a mesa. Olhando para a mocinha,
disse:
— Merda! Ainda mais essa. Agora vamos ter de inventar uma história sobre aquele moleque desgraçado. Encarou seu Vito, que prontamente desviou os olhos em direção ao chão. O chefe gritou: — Ô velho. Você aí, está me ouvindo? Você vai escrever num bilhete que o moleque está bem. Vai escrever alguma coisa sobre o moleque agora! Seu Vito começou a compreender o que poderia estar acontecendo. De tanto o chefe não desgrudar os olhos daquela página dobrada do jornal (embora, de onde estava, só conseguisse ver que não era nenhuma manchete, foto, ou mesmo notícia sobre o sequestro, e sim uma página com vários anúncios pequenos, do tipo classificados), pensou que a resposta ao pedido de resgate, feito com as marcas de suas mãos no cimento, estava, de algum modo, naquele jornal. Era, provavelmente, uma resposta negativa, porque exigia notícias de Renato, concluiu. A polícia, seguramente, acompanhava o caso, pensou seu Vito. Mas, se pediam notícias do neto, era porque ninguém sabia onde estava, nem mesmo a polícia. Então, perguntou a si mesmo: o que significava aquilo? Preocupou-se... O pior? O disparo que ouvira? Não, não podia ser... O chefe, com brutalidade, jogou em cima de seu Vito a caneta e um papel de embrulho. — Escreve aí, velho! Escreve que o moleque está bem. Que ele está aqui, com você. Seu Vito fez como se estivesse pensando no que escrever, tentando ganhar tempo, refletindo. A cabeça baixa, a caneta sobre o papel marrom engordurado de mortadela, apoiado sobre o joelho. Depois, disse, tentando transparecer a maior serenidade do mundo: — Se me permite, acho que eles não vão acreditar no que eu escrever. Eles querem é que o próprio menino escreva. — Velho vagabundo! Vai discutir comigo agora? — O chefe deu um safanão em seu Vito. — Escreve qualquer merda aí. Cão do inferno!
— Ei!; ei!, calma. Não precisa machucar ele — disse a mocinha. — O que é? De que lado você está? — O chefe encarou a garota. Depois; olhou sério para o comparsa: — E você? Está com peninha dele; também?
Foi quando seu Vito jogou uma cartada decisiva. Sabia o risco que estava correndo. Assim mesmo foi em frente; enchendose de coragem, num misto de vingança, ódio, ameaça e desespero, tudo ao mesmo tempo. O que mais pesou em sua decisão, apesar do erro fatal que podia estar cometendo, foi pensar que, se o neto estivesse morto, ele também poderia morrer, pouco se importava. O que mais restava da vida? Seu Vito pôs, então, a caneta no chão. Bem devagar, quase como num gesto teatral, pegou o papel com as duas mãos e com as pontas dos dedos começou a rasgá-lo, a picá-lo, a repicá-lo em pedacinhos, enquanto encarava o homem encapuzado e dizia com firmeza, olhando diretamente para os seus olhos: — Pode me matar. Não me importo. Pode atirar... Não vou escrever nada. Só quero saber do meu neto!
17. Aqui, agora
Embora Renato sentisse medo, muito medo, ele se sentia mais era arrasado, pois o jogo chegara ao fim: havia perdido, havia sido derrotado; ele perdera! E, embora não soubesse o que fazer, sabia que era preciso agir. Precisava agir! Não podia continuar naquela cama nem mais um minuto. Mas não tinha a mínima vontade de se levantar, a mínima coragem, a mínima... — Perdi! — gritou, quase chorando. Algo dentro dele, frágil ainda, parecia querer lutar contra a sensação de impotência, de desânimo. Como se dissesse que não era hora para covardias, que o jogo não terminara: porque ele estava vivo, sobre isso não havia dúvida. Sim, estava vivo! Perdera uma fase... — Que azar! — gritou. Só dependia dele reunir forças para continuar lutando. Mas como recobrar o ânimo diante da triste sensação de derrota? Desde a infância, quando tinha lá seus sete, oito anos, nunca mais molhara a cama. Arrependido, sentindo-se culpado, humilhado — porque já se sentia um homem e voltara a fazer isso —, Renato, evitando se mexer para não sentir a umidade quente dos lençóis, lembrou-se então daqueles tempos... Como tinha raiva da mãe quando ela estendia o lençol no varal, parecendo de propósito para mostrar aos vizinhos a sua grande obra da noite: a mancha arredondada! Pior ainda: como se sentia envergonhado quando, nesses dias de colchão com a marca amarela, tio André vinha visitá-lo! Renato sabia que precisava lutar consigo mesmo a fim de conseguir forças, para, ao menos, se sentar naquela cama. Não era a dor o que incomodava, e sim o arrependimento, a falta de ânimo, a melancolia. Ainda deitado, espreguiçou-se lentamente, alongando todos os músculos, como fazem os cães quando acordam. Tentou se lembrar do sonho que tivera. Com certeza sonhara, e sonhara muito. Mas não se lembrava de nada, absolutamente nada. Sabe Deus o esforço que foi preciso fazer para, simplesmente, mover parte de seu corpo e conseguir enfim se sentar. E se sentiu satisfeito por isso. Então, algo começou a brotar dentro dele, ainda tênue como o pio de um pássaro e que talvez tenha nascido do fundo de seu coração ou das profundezas do sonho que tivera: a esperança de que nem tudo estava perdido e que ele poderia encontrar o avô. Renato pôs os pés no chão, primeiro o direito para dar sorte, depois o esquerdo; em seguida fez o sinal da cruz, como a mãe ensinara, e deu os
primeiros passos em direção à porta, mas de repente parou. Decidiu voltar e arrumar a cama. Era também um pequeno sinal de agradecimento a quem lhe proporcionara o descanso. Achou que, fazendo assim, outro que precisasse (tal como ele precisara) encontraria a cama pronta (como a encontrara). Afinal, havia feito isso depois de comer, recolhendo os talheres e colocando-os na pia. O mesmo a mãe ensinara em relação à cama em que dormisse, e era como se ela soprasse em seus ouvidos: "Nunca se esqueça, Cláudio Renato; primeiro, ao se levantar, é fazer o sinal da cruz; em seguida, arrumar a cama". Muito embora em sua casa quase nunca obedecesse, agir assim, naquele momento, o fez sentir-se melhor e aos poucos ajudou a recobrar o ânimo. Foi no instante em que estendia os lençóis, prendendo as pontas sob o colchão, que Renato teve o pressentimento. Um pressentimento que o fez se arrepiar da cabeça aos pés. Como se já tivesse visto aquela cena antes: ele, exatamente ali, arrumando aquela cama, naquele quarto... Como se tivesse sonhado isso! Como se visse a própria imagem num espelho, um espelho onde estava aprisionado. Como numa tela eletrônica refletindo a si mesmo estendendo aquele lençol... Embora aquela imagem fosse a dele, o seu rosto ali, refletido, pareceu ser o rosto de um garoto determinado, corajoso, que não desiste nunca. Subitamente, como num lampejo, Renato lembrou-se então da enorme onda e do bebê. Em seguida, do avião e de seus pais ao lado dele! Mas isso não havia sido um sonho, havia sido o jogo, concluiu. Muito real para ser um sonho. Agora, sim, é que poderia estar sonhando... Aquele quarto, aquela cama, eram a realidade? Pois tudo parecia acontecer num outro tempo; nem futuro, nem passado, noutra dimensão. E toda essa estranheza o confundiu. Renato sentiu pressa. Ajeitou os travesseiros conforme os havia encontrado. Antes de sair, deu a última olhada no quarto para ver se tudo estava em ordem. Então correu em direção à porta. Ao abri-la, reparou que os pratos e talheres que deixara na pia haviam sido lavados. O melhor então, pensou, era ficar naquela casa e esperar. Mais cedo ou mais tarde iria aparecer alguém para ajudá-lo. Mas teria tempo para esperar? Ele estava justamente questionando o que fazer quando um pássaro pousou no parapeito da janela. De súbito, repetiu-se a sensação! Pareceu, também, ter visto aquela cena antes: o pássaro vir voando do quarto e pousar sobre o parapeito da janela. Tudo estava muito estranho nesse dia.
O pássaro ali, na janela, como se esperasse por ele, a poucos metros de distância.
Renato foi se aproximando devagar, bem devagar, com muito cuidado para não assustar o pássaro. Quando estava prestes a tocá-lo, ele voou para fora. Correu até a janela a tempo de seguir o voo curto, rasante, e vê-lo pousar no chão, bem em cima do game. Instintivamente, Renato pulou a janela espantando o pássaro para longe e já se abaixando para pegar o game. Estranho o pássaro pousar exatamente sobre o game. "Terá sido só coincidência?", perguntou a si mesmo. Enquanto limpava a tela esfregando-a na camisa, conferindo se os controles estavam em ordem, algo chamou a atenção de Renato: os números!
Ora! Pelo que se lembrava, a última fase registrada não era essa, além de que perdera o bônus. Será que perdera o bônus em troca de não ter perdido a vida esmagado? Teria sido ele, então, personagem de um jogo de seu próprio game? Passara da fase 4 para a fase 5 por ter entrado na casa, se alimentado e dormido um bom sono? Realmente, tudo estava muito estranho naquele dia. A última vez que utilizara o controle, lembrou-se, havia sido na encruzilhada. Agora, o pássaro pousar bem em cima do game não seria um sinal para que voltasse a usá-lo? Estava assim, sem saber ao certo como agir, quando ouviu um canto vindo da árvore. Um canto simples, melodioso, na forma de um assobio que parecia dizer: "Aqui, agora". Repetindo: "Aqui, agora. Aqui, agora. Aqui, agora". Ele correu para a árvore de onde vinha o canto. Tentou localizar o pássaro num dos galhos. Era alta a árvore, as folhas verdes e, nas pontas dos galhos, as flores vermelhas. A mesma árvore, lembrou-se, em que pousara a ave gigante quando ele se escondia do cão. Ouviu novamente: "Aqui, agora. Aqui, agora. Aqui, agora". Mas o canto já não vinha daquela árvore, e sim de outra, adiante. Quando Renato chegou até a árvore, ainda teve tempo de ver o pássaro e reconhecê-lo. Sim, era ele! O topetinho empinando toda vez que cantava. E já não sabia se aquele era o pássaro que havia pousado sobre o game ou se era o mesmo pássaro, familiar, estranhamente familiar, que pareceu ter visto num sonho de antigamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário