10. O Mestre dos jogos
A ave voou do alto da árvore para junto do cão, que agora parecia estar apoiado sobre as patas traseiras. Um voo meio desajeitado, de avião planador sem rumo. As grandes asas abertas. Uma total discrepância para a agilidade demonstrada quando pousou na árvore. Ao tocar o solo, a longa cauda prateada deslizou alguns metros sobre a grama, e mais parecia um vestido de noiva que se arrastava pelo chão. Vigiando-os pelas costas, Renato percebeu quando o cão e a ave trocaram um rápido cumprimento. Continuaram a conversar, uma conversa que parecia animada, mas que a distância não permitia ouvir. Assim, o cão e a ave, ou o que quer que ambos fossem, tomaram o caminho para a pequena construção feita de madeira. Renato pensou em segui-los, mas, por cautela, achou melhor esperar até que entrassem na casa.
* * *
Sob o pé descalço, Renato sente surgir uma trinca. Não, uma fenda! Em seguida, uma grande explosão! É um vasto e profundo abismo em que está metido. Agora, ao longe, o pior: o que parece ser uma onda. Sim, uma onda gigantesca. Uma onda enorme que se aproxima perigosamente! Renato se vê na praia. Sente que precisa correr, correr, fugir dali enquanto é tempo, o mais rápido possível, porque a onda está chegando cada vez mais perto. Ele começa a correr, a correr o máximo que consegue, quando vê, sobre um banco de areia, um bebê chorando. Um bebê que poderia ser o irmão que ele não teve. A onda vindo, monstruosa, nas alturas!
Terá tempo? Não, não terá tempo para voltar e salvar o bebê. O que fazer? Renato respira. Pensa... Rápido: é preciso decidir o que fazer!
* * *
Ainda atordoado com o acontecido, cansado, quase sem fôlego, totalmente confuso, os pés sujos de areia, porém sem precisar mais nadar — sim, ele não precisava mais nadar! —, quando Renato deu por si, e se lembrou de onde estava, teve ainda tempo de ver fecharem a porta. Chegou a ouvi-la bater. Com pressa, correu em direção à casa. Sabia que não podia perder nem mais um segundo sequer. Aproximou-se agachado da pequena janela. E só então parou para respirar. Precisava descansar, recuperar o fôlego. Subitamente, a sensação de que chegar àquela casa, estar onde estava agora, era uma espécie de prêmio por ter passado pelo que passara com aquela onda enorme, oceânica. E pensar assim o animou. Mas não podia perder tempo. Então, com todo o cuidado, Renato foi lentamente levantando a cabeça e se pôs a espiar o que acontecia lá dentro. Demorou um pouco para concluir que tanto a ave como o cão não estavam naquela casa. Não era possível, mas, por mais que tentasse localizá-los, não conseguia vê-los em nenhum canto. A única coisa viva ali, podia jurar — apesar
do vidro embaçado —, eram... eram duas pessoas, ou o que parecia ser duas pessoas, sentadas à mesa. Os vidros não permitiam ver com nitidez. Renato duvidou do que estava vendo. Ainda agachado, decidiu contornar a casa. "É óbvio", pensou, "o cão deve estar onde geralmente ficam os cães, ou seja, no quintal". "A ave, num viveiro ou numa gaiola", imaginou. Ele contornou toda a casa, e nada! Onde haviam se metido? Olhou novamente da janela: nada além daqueles dois. Ambos comendo com apetite, debruçados sobre pratos fumegantes, bem cheios, que faziam a barriga de Renato reclamar, contorcer-se, doer de fome. De repente, tomou um susto enquanto olhava. Porque eles olhavam diretamente para ele! Olhares que se entrecruzaram por um instante. Os seus olhos arregalados, famintos, através da claridade baça dos vidros. Renato tirou o rosto da janela, mesmo sabendo que era tarde demais. Virou-se e deixou seu corpo deslizar rente à parede até cair sentado, no chão. Ficou ali, sob o parapeito da janela, entorpecido de medo e sem saber o que fazer. Ouviu, em seguida, o arrastar de uma cadeira. Alguém se levantara da mesa. Ouviu passos, sim!, passos... toc, toc, toc... como o salto alto de sapato de mulher. Passos que vinham em direção à janela, em direção a ele!
* * *
Renato, então, vê a aeromoça passar ao seu lado correndo, em pânico! De um lado, o da janela, está sentada a mãe de Renato. Ele no meio. De outro lado o pai, nas três poltronas conjugadas do corredor do avião. A máscara de respirar despenca do teto. A mãe, atabalhoada, por mais que tente, não consegue colocá-la. Ele decide ajudar a mãe, que já se debate, sem ar. Mas sabe que precisa colocar primeiro a sua máscara para depois colocar a da mãe, enquanto vê passageiros sendo sugados, outros tentando saltar de paraquedas no buraco que surgiu na fuselagem, com a explosão. Gente desmaiada, sangue, desespero! Mas é só um, apenas um, o paraquedas que Renato consegue! Pai e mãe gritam, os olhos esbugalhados, não concordam, não querem e devolvem o paraquedas para ele. Não aceitam, jamais. Juntos, tentam colocá-lo nele! Se alguém vai se salvar, que seja ele. Renato precisa agir. O que fazer? Escolher a quem? Meu Deus! Renato respira. Pensa... Rápido: é preciso decidir o que fazer!
* * *
Confuso, Renato nem ousou olhar para o alto. Depois, aos poucos, começou
a perceber onde estava. Apalpou o chão ao redor: a segurança feliz de sentir os pés firmes na terra. Novamente a sensação de que estar ali, onde estava agora, havia sido por merecimento, talvez por ter tomado a decisão certa, quando voltou a ouvir os passos, toc... toc... toc... o som cada vez mais perto! Nem ousou olhar para cima, para a janela. Ao contrário: olhou para baixo, para o game em suas mãos. O mostrador, no canto, pulsando:
Renato ouviu forçarem o trinco da janela. Ouviu abrirem os vidros. Quando pressentiu a janela aberta, pouco acima de sua cabeça, sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Mas não olhou para cima. O controle nas mãos, pronto para que apertasse as teclas, qualquer tecla. Seus dedos sobre elas. O mostrador pulsando com os números... Mas, se não havia usado o controle quando vira o cão, por que usá-lo agora? Não era melhor esperar? Lembrou-se da penúltima vez que havia conferido o mostrador e a tela marcava: Fase 3 = 3.816 pontos. Desde aquela vez, não tocara em nenhuma tecla! Nas situações de vida e morte que enfrentara, na água e depois no ar, nem se lembrara das teclas, de nada, e mesmo assim passara para a Fase 4, e ganhara o tal bônus! Toc... toc... Os passos, como se retornassem em direção à mesa, toc... toc... toc... Agora, os vidros abertos permitiam que as vozes chegassem até ele. Primeiro, ouviu uma voz aguda; em resposta, a fala rouca, cadenciada. É claro, concluiu: sabia quem eram eles! Renato aguçou os ouvidos. Voz aguda: — Se fosse outro, teria fugido. Voz rouca: — Ou estaria aqui, sentado à mesa, ao nosso lado. Voz aguda: — Por que não faz isso, se tem fome? Voz rouca: — O que tem passado faz que desconfie de tudo e de todos, que desconfie até mesmo do que esteja acontecendo com ele. A desconfiança, nesse caso, é
sábia. Mas faz que tenha medo, muito medo. Um medo que pode durar a vida toda. Esse é um teste para sua personalidade. Mais do que teste, prova de tolerância, de persistência. O barulho dos talheres, vez ou outra, fazia-se ouvir mais alto, entrecortando as vozes. É claro que falavam dele, Renato não teve dúvida. E os dois não pareciam ser, exatamente, criaturas do mal que poderiam colocá-lo em perigo. Nada de usar o controle, portanto. Tirou os dedos das teclas. Voz aguda: — Esse é o desejo de nosso Mestre, que encontremos um meio de fazer que não cresça com medo ou rancor. Que não carregue mágoas vida afora e aposte que a vida é boa. Voz rouca: — Isso dependerá dele, e só o tempo dirá. Renato estava tão perplexo quanto paralisado. Pensou em pular a janela e ir logo àquela mesa e se apresentar. Ao contrário, o que fez foi aguçar ainda mais os ouvidos, quando começou a ouvir a voz aguda novamente: — O Mestre dos Jogos disse que um homem verdadeiro deve ser capaz de estar acima de tudo. Tanto das coisas boas como das coisas ruins que aconteçam com ele. É como num jogo, em que é preciso aprender a ganhar e a perder.
— Sim. É um grande ensinamento estar acima de tudo. Para isso, o decurso dos dias é a melhor lição. Perder ou ganhar, coisas boas ou coisas ruins, afinal, pouco importa, pois o passar do tempo faz que se igualem. Será um importante teste para ele a responsabilidade de jogar na vida real com a mesma coragem e disposição com que joga seus jogos. Mas creio que não devemos influir no curso dos acontecimentos. Fez-se um silêncio de alguns segundos, e Renato ouviu: — O Mestre sugere que se permita a ele desfrutar de sua habilidade essencial, Guia das Trevas. Aliás, já conseguiu atraí-lo até aqui. — É o que farei em seguida.
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