22. Almoço de domingo
A história mais estranha que seu Vito contou para provar a necessidade urgente de voltar a morar na chácara foi a do gavião. Embora seu Lindson, o jardineiro, estivesse indo lá todos os dias para pôr comida para os cachorros e as galinhas e, terça sim, terça não, rastelasse as folhas e cuidasse do jardim e do viveiro, ele não saberia como lidar com o gavião, se aparecesse planando por lá. Como contou seu Vito, tentando se justificar durante o almoço do domingo, a verdade era que a chácara se transformara numa enorme concentração de passarinhos. Havia os que viviam soltos e só comiam frutas dos comedouros; havia tico-ticos, rolinhas e chupins que comiam a quirera espalhada pelo chão; havia ainda os pássaros do viveiro: os periquitos— -australianos e os canáriosbelgas. Com toda essa comida farta, o gavião sempre rondava por perto, nas alturas, com seu voo inconfundível de asas abertas. Sempre na espreita, aguardando apenas o momento certo de dar o rasante. E, tão rápido quanto descia ao chão, tão logo subia aos céus, feito um foguete, levando em suas garras a presa ingênua, já desfalecida. Uma tarde — contou seu Vito, e todos pararam de comer para ouvi-lo —, ele desceu sobre o viveiro e o destino fez que decepasse, justamente, a cabeça do azulão. O pássaro — explicou — ele ganhara de presente da esposa quando ainda moravam na cidade. Daquela vez — continuou contando — o gavião só não matou outros pássaros porque, ao ouvir um alvoroço de bater de asas e de pios desesperados, seu Vito correu para o quintal espantando-o a tempo. Desse dia em diante, ele declarou guerra ao gavião. Planejou, então, um jeito de atraí-lo para uma presa fácil, numa gaiola bem visível. Assim que descesse, iria emboscá-lo no galinheiro. Teve a paciência necessária para conseguir seu intento. Quando o afugentou para junto das galinhas e o gavião se viu sem saída, seu Vito, com um pano grosso, o deteve em suas mãos. Naquele momento, foi como se tivesse uma conversa de homem para homem com a ave: olhou bem dentro de seus olhos, olho no olho, e a jurou de morte caso retornasse com seus rasantes implacáveis. A partir de então, ele e o gavião mantinham uma espécie de acordo tácito: enquanto seu Vito fosse visto por ali, o gavião sabia que, se tentasse atacar seus pássaros, corria perigo mortal. E foi assim que se instaurou uma paz duradoura na chácara, mas que deve ter durado, segundo seu Vito, até o dia do sequestro.
Mas nem a história do gavião, nem mesmo a mania de lavar periodicamente os troncos das goiabeiras para que se tornassem ainda mais vistosas do que eram, com a desculpa de que as árvores acabaram se acostumando a isso e sentiam a falta do banho, foram motivos suficientes para convencer a filha de que ele precisava voltar para a chácara. Muito menos a comoveu ele ter contado a história do Chupisco, um cachorro chiuaua que corria solto pelo quintal, trazido por um amigo da cidade quando de uma visita à chácara. O cachorro se encantou tanto com o lugar que se recusou terminantemente a entrar no carro e a voltar para o apartamento onde morava. Foi um sufoco para colocá-lo no banco de trás. Enquanto voltavam, no meio do caminho, Chupisco deu um jeito e saltou do carro pela fresta do vidro, surpreendendo seu Vito, horas depois, com seu olhar de foragido da cidade grande, a pedir compaixão. Portanto, fosse qual fosse o argumento, nada era capaz de convencer a filha. O desejo de Luci era que a chácara fosse vendida o mais rápido possível. Com o dinheiro, somado ao da casa onde moravam (que fora posta à venda), poderiam, então, comprar um apartamento com quartos suficientes para que vivessem todos juntos. Jamais aceitaria o pai morando na chácara novamente; para ela aquele se tornara um local perigoso, deserto, cheio de bandidos que metiam medo. Apesar de seu Vito se justificar com suas histórias, e repetir para quem quisesse ouvi-lo que os bandidos, esses sim, é que tinham de se mudar de lá, e não ele, nada a faria se demover de sua decisão. Para Cláudio Renato, ter o avô por perto, mais ainda na cama ao lado da dele, era como se tivesse descoberto uma nova felicidade. Claro que ele também sofria, como a mãe, quando o avô insinuava que já estava na hora de voltar. Porém, o garoto sabia que bastava um pouquinho de boa vontade para compreender que, do jeito que o avô gostava de levar a vida, seria muito difícil viver numa cidade grande, ainda mais num apartamento. — Seu Vito, me desculpe, mas, depois de tudo que aconteceu, não dá para acreditar que o senhor ainda queira morar na chácara — disse Leandro, depois de limpar os cantos da boca com o guardanapo. — Eu não me conformo, pai. Não consigo acreditar numa coisa dessas. E não vou deixar de jeito nenhum — emendou Luci, olhando fixamente para seu Vito. — Não vá, vô! Fica com a gente. Fica no meu quarto, Não está bom? — completou Cláudio Renato. Todos haviam terminado o almoço.
Leandro encheu seu copo e o copo do sogro com o resto do vinho italiano, da marca preferida de seu Vito. Tanto para ele como para Luci, aquele era o momento ideal para pôr um basta definitivo nesse assunto da chácara. O fato de estarem juntos num domingo, reunidos em torno de uma mesa, reforçava o sentimento familiar com uma força tal, pensavam, que seria capaz de sensibilizar seu Vito. — Pai, por favor, entenda. Veja o que nós passamos, o que o senhor e o seu neto passaram. Para que dar chance ao azar outra vez, pai? — Luci, minha querida, procure entender... Eu gosto é da chácara. É onde moram os meus amigos. — Seu Vito, me desculpe. Mas o senhor vive sozinho naquela chácara! Será que não está na hora de voltar para a cidade, conhecer pessoas diferentes e, quem sabe, até uma nova companheira? Por que não? Não é, Luci? Seu Vito ficou em silêncio e tomou mais um gole do vinho. — Que amigos, pai? Seja sincero: o senhor vive abandonado lá! — Sim. Amigos, filha... — falou seu Vito, desviando os olhos do olhar firme e inquiridor de Luci. — Meus pássaros, meus cães, minhas árvores... Para falar a verdade, filha, não saberia viver sem a companhia deles. Viver sem as minhas árvores. Desde pequenas cuido delas com as próprias mãos. Cuidei de suas raízes, hoje cuido de seus troncos, de seus galhos, de suas folhas. Conheço todas pelo nome, como se fossem filhas, assim como você, Luci. Sei das várias gerações de passarinhos que nasceram e vivem na chácara. O lugar onde dormem, comem e constroem seus ninhos. Todos os dias eles me fazem companhia. E gostaria de estar perto deles quando morrer. — Como o senhor é teimoso, pai! — O senhor não tem medo de ficar lá sozinho, seu Vito, depois de tudo que aconteceu? — indignou-se Leandro. — Tenho medo desta cidade também — respondeu seu Vito. Luci foi perdendo a paciência e disse algo um tanto impulsivamente, com raiva, orgulho, mesmo sabendo que poderia se arrepender depois: — Pai, o senhor pode até voltar, mas uma coisa prometo: nunca mais, nem eu, nem o Leandro — e apontando para o filho —, nem o Cláudio Renato poremos os pés naquela chácara. A decisão é toda sua. Se não quiser ver nunca mais a sua família, então vá!
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