sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 944 : A DIVINA COMÉDIA

PARAÍSO

CANTO XXV

S. Tiago examina o Poeta sobre a Esperança, perguntando em que ela consiste, se ele a possui, de onde veio nele. À segunda pergunta responde Beatriz; às outras duas responde Dante. Aproxima-se S. João Evangelista, e diz a Dante que o seu corpo, apesar da comum opinião, morrendo, ficara na Terra.
SE este sacro poema houver podido
(Em que tem posto a mão o céu e a terra
3 E em que hei por tanto tempo emagrecido)
Aquele ódio abrandar que me desterra
Do belo aprisco, onde eu dormi cordeiro,
6 Contrário aos lobos, que lhe movem guerra;
Com voz e lã melhor que de primeiro
Voltando, eu do batismo sobre a fonte
9 Hei-de, vate, cingir-me de loureiro;
Pois lá entrei na fé, que uma alma insonte
Aproxima de Deus e causa há sido
12 De girar Pedro em torno à minha fronte.
Então a nós um lume vem saído
Da grei, a que a primeira pertencia
15 Dos vigários, que há Cristo instituído.
Beatriz, resplendente de alegria,
— “Olha!” — me disse — “Eis o Barão famoso
18 Por quem vai-se à Galízia em romaria!
Quando à consorte acerca-se amoroso
O pombo, cada qual mostra, girando
21 Entre arrulhos o ardor seu amoroso:
Os dois Príncipes vi tão ledos, quando
Da glória sua no esplendor se acolhem
24 O manjar, que se frui no céu louvando.
Depois que as saudações entre si colhem
Coram me cada um tácito fica
27 Com tais clarões, que de os olhar me tolhem.
Sorrindo, Beatriz assim se explica:
— “Ó alma egrégia, por quem foi descrita
30 Delícia, de que a nossa igreja é rica,
“Aqui a Esp’rança faz ouvir bendita:
Mostraste-a, toda vez que aos três há dado
33 Jesus de vê-lo em sua Glória a dita.” —
— “Ergue o rosto com spírito esforçado,
Pois da terra quem sobe a tanta altura
36 Ser deve ao brilho nosso afeiçoado.” —
O ânimo desta arte me assegura
A luz segunda; a vista, pois, levanto
39 Aos montes, cujo lume a fez escura.
— “Se o nosso Rei te há dado favor tanto,
Que vês os condes seus antes da morte
42 Do seu palácio no recinto santo,
“Porque, vindo é verdade desta corte,
A Esperança, que tanto os homens prende,
45 Em ti, nos mais o coração conforte.
“O que ela seja diz, como se acende
Em tua alma; diz donde se origina.” —
48 Estas palavras inda o santo expende.
E quem as plumas conduziu beni’na
Das asas minhas neste vôo ingente,
51 Tornou, por que a resposta me previna:
“A militante Igreja um mais ardente
Filho não tem na Esp’rança, como escrito
54 É no Sol, que alumia a nossa mente.
“Eis por que Deus permite que do Egito,
Para ver a Sião tinha chegado
57 Antes de estar o tempo seu prescrito.
“Os outros pontos dois lhe hás perguntado,
Somente por que à terra ele respira
60 Quanto és desta virtude deleitado.
“Lhos deixo, sem que assim vangloria aufira;
Poderá responder ao teu contento,
63 Se a Graça divinal o alenta e inspira.
“Como discíp’lo, que a seu Mestre atento
De assunto fala, em que é perito e experto, —
66 Folgando de mostrar zelo e talento,
“Esperança é” — disse tu — “guardar certo
Da Glória, pela Graça produzida
69 E mérito provado e descoberto.
“Sendo luz de astros muitos procedida,
Pelo sumo cantor do Sumo Guia
72 Foi-me primeiro na alma introduzida.
“Espere em ti — na excelsa Teodia
Disse — aquele, que o nome teu conhece:
75 Com fé como eu, quem não conheceria?
“Como seu rocio, também sobre mim desce
O da Epístola sacra e, redundante,
78 Outros inunda a chuva, que recresce.”
Falava assim: do seio coruscante
Daquele incêndio tremulava chama,
81 Qual relâmpago, súbita, incessante.
Respondeu-me: — “Esse amor que inda me inflama
Pela virtude, que me dera alento
84 No martírio, ao findar da vida a trama,
“Atrai-me a ti, que tens contentamento
Por ela; e, pois, me diz de qual ventura
87 A Esperança te fez prometimento.” —
E eu: — “Foi declarado na Escritura
O sinal (sua forma está sabida)
90 De almas, que, amigas, o Senhor apura
“Disse Isaías: cada qual cingida
Em sua pátria será de dupla veste,
93 E a pátria sua é nesta doce vida.
“Por que mais a verdade manifeste,
Das cândidas estolas discorrendo
96 Mais claro teu irmão falou do que este.” —
Palavras tais eu proferido havendo.
“Sperant in te” ressoa lá da altura,
99 Ao hino os coros todos respondendo.
Lume entre eles depois tanto fulgura,
Que, se o Câncer tivesse igual estrela,
102 Fora do inverno um mês luz sem mistura.
Como leda no baile entra a donzela
E, para a noiva honrar, dança inocente
105 Sem que vício ou vaidade impere nela:
O clarão assim vi resplandecente
Aos dois se apropinquar, que circulavam
108 Quanto convinha ao seu amor ardente.
Entrou no canto e dança, que formavam:
Qual sem voz sposa imota, aos três o aspeito
111 De Beatriz os olhos contemplavam.
— “O santo é este, que estreitava ao peito
O nosso Pelicano e dele há sido
114 Sobre a cruz à missão sublime eleito.” —
Assim diz Beatriz. Sempre embebido
O seu olhar está na luz terceira
117 Depois, como antes de eu a ter ouvido.
Quem do sol fita os olhos na carreira,
Crendo vê-lo de eclipse anuviado,
120 Para ver sente o efeito da cegueira:
Por esse lume assim fui deslumbrado.
— “Por que te afanas procurando” — fala —
123 “O que no céu não pode ser achado?
“Na terra o corpo meu à terra iguala,
Até que o nosso número complete
126 O que eterno propósito assinala.
“Ter vestes duas só do céu compete
No claustro aos lumes dois, que se elevaram:
129 Esta verdade ao mundo teu repete.” —
Calou-se e os esplendores três pararam
E com eles a doce melodia,
132 De que os sons a coréia acompanharam.
O remo, assim, que o mar de antes feria,
Se há fadiga ou perigo, é bem que cesse,
135 Logo ao sinal do apito, que assobia:
Na mente ai! quanto a comoção recresce,
Quando o gesto não pude ver formoso
De Beatriz ainda que eu stivesse
139 Ao seu lado e no mundo glorioso!
NOTAS DO CANTO XXV
[1] 1-6. Se este sacro poema etc. Dante exprime a esperança que o seu Poema abrande os espíritos dos seus concidadãos e lhe seja concedida a volta a Florença.
[2] 17-18. O Barão etc., S. Tiago, cujo corpo foi sepulto em Compostela, na Galícia.
[3] 24. O manjar, Deus.
[4] 29-30. Por quem foi descrita etc. refere-se Dante à chamada epístola católica que, porém, por muitos é atribuída a S. Tiago Zezedeu.
[5] 32-33. Toda vez etc.: no Evangelho os três apóstolos Pedro, João e Tiago figuram as três virtudes teologais, a fé, a caridade e a esperança.

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