sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 897 : A DIVINA COMÉDIA

PURGATÓRIO
CANTO XI
Virgílio pergunta às almas que purgam o pecado da soberbia qual é o caminho para subir ao segundo compartimento, e uma delas dá a indicação requerida. Umberto Aldobrandeschi dá-se a conhecer e fala com Dante, que, depois, reconhece Oderisi de Gubbio, pintor e gravador. Oderisi dá-lhe notícia de Provenzano Salvani, que está junto com eles.
VÓS, que nos céus estais, ó Padre nosso,
Não circunscrito, mas porque haveis dado
3 Mais aos primeiros seres o amor vosso,
“Vosso nome e poder seja louvado!
Graças à criatura jubilosa
6 Ao saber vosso renda sublimado!
“Do reino vosso a paz venha ditosa!
Que vão de havê-la o empenho nos seria,
9 Se não vier da vossa mão piedosa.
“Como a vós a vontade se humilia
Dos vossos anjos, entoando hosana,
12 Façam assim os homens cada dia!
“A substância nos dai quotidiana
Hoje: sem ela em áspero deserto
15 Se atrasa quem por ir além se afana!
“E como a quem nos faz mal descoberto
Damos perdão, nos perdoai clemente,
18 Indi’nos sendo nós, Senhor, por certo.
“Oh! não deixeis cair a defidente
Virtude nossa em tentação do imigo!
21 Livrai-nos dele, em nos pungir ardente!
“Não mais somos, Senhor, nesse perigo,
Em que precisa esta oração nos seja;
24 Mas não os que hão mister na terra abrigo.” —
Ao céu rogando que ao seu bem proveja
E ao nosso, as almas sob o peso andavam,
27 Como o que oprime a quem sonhando esteja.
Com desigual gravame se arrastavam
Ofegantes no círculo primeiro,
30 E do pecado as névoas expurgavam,
Se em bem nosso com zelo verdadeiro,
Oram, como em seu prol fará no mundo
33 Quem tem no bem querer seu peito useiro?
Ajudemo-las, pois, vestígio imundo
A lavar, por que leves, puras sejam,
36 Do céu se alando ao brilho sem segundo.
“Ah! compaixão, justiça vos consigam
Presto alívio, e possais, o vôo erguendo,
39 Ir até onde os desejos vos instigam!
“Valei-nos a vereda nos dizendo
Mais curta ou a que é menos escarpada,
42 Mais de um caminho a se ascender havendo.
“Ao companheiro meu assaz pesada
É a carne de Adam, que inda o reveste:
45 Por mais que esforce, o afana esta jornada.” —
A voz, que respondeu ao Mestre a este
Dizer, não sei a que alma pertencia
48 Por indício qualquer, que o manifeste:
— “Vinde à direita em nossa companhia
Pela encosta, e vereis o passo estreito,
51 Que uma pessoa viva subiria.
“Se este penedo não tolhesse o jeito,
A cerviz orgulhosa me domando
54 E obrigando a juntar o rosto ao peito,
“Deste homem para a face, atento olhando,
(Não sei quem é) talvez o conhecera,
57 E assim me fora compassivo e brando.
“Toscano fui, ilustre pai tivera.
Guilherme Aldobrandeschi se chamava:
60 O nome seu algum de vós soubera?
“Tanta arrogância a glória me inspirava
Do meu solar e os feitos valorosos,
63 Que a nossa mãe comum não mais pensava,
“Olhos volvendo a todos desdenhosos.
Perdi-me assim; os atos meus em Siena
66 Foram em Campagnatico famosos.
“Chamei-me Umberto; da soberba a pena
A mim não coube só: de igual desgraça
69 Vem a causa que aos meus todos condena.
“Este fardo, que os passos me embaraça
Mereço, por cumprir-se a lei divina:
72 Vivo o não fiz, é justo que ora o faça.” —
Enquanto, ouvindo, a fronte se me inclina,
Uma das almas (não a que falava)
75 Sob o peso se torce, que a amofina.
Gustave Doré
E viu-me e, conhecendo-me, chamava,
Os olhos seus fitando esbaforida
78 Em mim, que, recurvado a acompanhava.
— “Oderisi não foste” — eu disse — “em vida,
Honra de Agubbio, honra daquela arte
81 Que iluminar Paris ora apelida?” —
— Tornou-me: — “Hoje o pincel (cumpre informar-te)
De Franco de Bolonha mais agrada:
84 A honra é toda sua, minha em parte.
“Por mim não fora em vida proclamada
Esta verdade, quando esta alma ardia
87 Na ambição de primar nessa arte amada.
“Aqui de tal soberba o mal se expia;
Staria alhures; mas a Deus eu pude
90 Mostrar que de pecar me arrependia.
“Quanto a vaidade o peito humano ilude!
Dessa flor como esvai-se a formosura,
93 Se não seguir-se um séc’lo inculto e rude!
Cimabue cuidou ter na pintura
A liça dominado: mas vencido
96 Ficou: a glória Giotto fez-lhe escura.
Assim de estilo na arte cede um Guido,
A palma a outro: agora é bem provável
99 Seja de ambos o mestre já nascido.
“Rumor mundano é como vento instável
Que a direção varia de repente:
102 Conforme o lado, o nome tem mudável.
“De ti que fama ficará manente,
Se da velhice cais no extremo passo,
105 Ou se findas na infância inconsciente,
“De hoje a mil anos, tempo mais escasso,
Da eternidade em face, que um momento
108 Ante a esfera a mais tarda lá no espaço?
“Quem me precede e vai assim tão lento
Na Toscana entre todos foi famoso:
111 Apenas salvo está do esquecimento.
“Em Siena, que há regido poderoso,
Quando perdeu-se a raiva florentina.
114 Soberba então, objeto hoje asqueroso.
“A fama vossa iguala-se à bonina,
Que flore e morre: o sol, por quem nascera
117 Na terra a prostra e a cor cresta à mofina.” —
Respondi-lhe: — “O dizer teu em mim gera
Saudável humildade e o orgulho mata.
120 Esse, que apontas, conta-me quem era.” —
“De Provenzan Salvani” — diz — “se trata:
Aqui stá, porque Siena ele cuidara
123 Ter nas mãos — presunção de alma insensata!
“Caminha assim curvado, e nunca pára
Dês que a vida perdeu eis o castigo
126 De quem tanto à soberba se entregara!” —
— “Se o que demora até final perigo
A penitência” — eu disse — “e errado corre,
129 Subir não pode e aqui não acha abrigo,
“Se uma oração piedosa o não socorre,
Durante prazo igual ao da existência,
132 Como ao martírio Provenzan concorre?” —
— “Quando era” — torna — “no auge da influência,
Sobre a praça de Siena, suplicando,
135 Ter ante o povo humilde continência,
“De um amigo o resgate procurando,
Que era por Carlos em prisão detido,
138 Tremeu angustiado e miserando.
“Não mais: não sou, de obscuro, compreendido,
Mas te há de ser em breve isto explicado
Por filhos dessa terra em que hás nascido. —
142 “Por tão bom feito o ingresso lhe foi dado.”
NOTAS DO CANTO XI
[1] 59. Guilherme Aldobrandeschi, senhor de Grosseto. Quem fala é o filho Umberto, que guerreou contra Pisa.
[2] 79. Oderisi de Gubbio, excelente pintor e miniaturista.
[3] 83. Franco de Bolonha, célebre miniaturista.
[4] 94-96. Giotto e Cimabue, célebres pintores. Giotto, discípulo de Cimabue, superou o mestre na sua arte.
[5] 97-98. Um Guido e outro, Guido Cavalcanti superou a Guido Guinicelli na
arte da poesia.
[6] 121. Provenzano Salvani, de Siena, senhor muito poderoso, morto na batalha de Colle em 1269.
[7] 133-138. Quando era etc., para obter a libertação de um amigo prisioneiro de Carlos d’Anjou, ele se humilhou a pedir a esmola aos seus concidadãos.

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