sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 887 : A DIVINA COMÉDIA

PURGATÓRIO
CANTO I
Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório.O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois, relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte.

DO engenho meu a barca as velas solta
Para correr agora em mar jucundo,
3 E ao despiedoso pego a popa volta.
Aquele reino cantarei segundo,
Onde pela alma a dita é merecida
6 De ir ao céu livre do pecado imundo.
Ressurja ora a poesia amortecida,
Ó Santas Musas, a quem sou votado;
9 Unir ao canto meu seja servida
Calíope o som alto e sublimado,
Que às Pegas esperar não permitira
12 Lhes fosse o atrevimento perdoado.
Suave cor de oriental safira,
Que se esparzia no sereno aspeito
15 Do ar até onde o céu primeiro gira,
Recreia a vista; e eu ledo me deleito
Em surdindo da estância tenebrosa,
18 Que tanto os olhos contristara e o peito.
A bela estrela, a amor auspiciosa
Sorrir alegre faz todo o Oriente,
21 Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.
Ao outro pólo endereçando a mente,
Volto-me à destra, e os astros quatro vejo,
24 Que vira só a primitiva gente.

Folgar o céu parece ao seu lampejo.
Do Norte, ó região, viúva hás sido,
27 De os contemplar te não foi dado ensejo.
Depois de os remirar, já dirigido
Olhos havia para o pólo oposto,
30 Donde a Carroça havia-se partido,
Eis noto um velho, perto de mim posto,
Que reverência tanta merecia,
33 Que mais do pai não deve o filho ao rosto.
Nas longas barbas nívea cor saía,
Sendo na coma sua semelhante,
36 Que em dupla trança ao peito lhe caía.
A luz dos santos astros rutilante
De fulgor tanto lhe aclarava o gesto,
39 Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.
— “Quem sois que em contra o rio escuro e mesto
Do eterno cárcere heis fugido os laços?” —
42 Movendo as nobres plumas, disse presto.
“Quem vos guiou alumiando os passos
Para a profunda noite haver deixado,
45 Que enluta sempre os infernais espaços?
“As leis do abismo acaso se hão quebrado?
O céu dá, seus decretos revogando,
48 Que dos maus seja o meu domínio entrado?” —
Travou de mim Virgílio, me exortando
Por voz, aceno e mãos: como queria
51 Os joelhos curvei, olhos baixando.
— “De motu meu não vim” — lhe respondia —
De Dama aos rogos, que do céu descera
54 Socorro este homem, sirvo-lhe de guia.
Pois que é desejo teu que a nossa vera
Condição definida mais te seja,
57 Prestar me cumpro explicação sincera.
“Aura da vida este home’inda bafeja,
Mas tanto, de imprudente, se arriscara,
60 Que é maravilha vivo ainda esteja.
“Disse como a salvá-lo me apressara:
Por onde os passos dirigir pudesse
63 Essa vereda só se deparara.
“Mostrei-lhe a gente, que por má padece;
Mostrar-lhe intento os que ora estão purgando
66 Pecados no lugar, que te obedece.
“Longo seria como o vou guiando
Dizer-te: é força do alto a que me impele,
69 Para te ver e ouvir o encaminhando,
Digna-te, pois, bení’no ser com ele:
A liberdade anela, que é tão cara:
72 Sabe-o bem quem por ela a vida expele.
“Por ela a morte não te há sido amara
Em Útica, onde a veste foi deixada,
75 Que em Juízo há de ser de luz tão clara.
“Por nós eterna lei não é violada:
Ele inda vive; Minos não me empece;
78 No círc’lo estou, onde acha-se encerrada
“Tua Márcia, que em casto olhar parece
Rogar-te ainda que por tua a tenhas:
81 Lembrando-a em favor nosso te enternece.
“Ir deixa aos reinos teus, não nos retenhas;
Hei de a Márcia dizê-lo agradecido,
84 Se lá de ti falar-se não desdenhas.” —
— “Márcia, a meus olhos tão jucunda há sido
Que — tornou-lhe Catão — eu de bom grado
87 No mundo quanto quis lhe hei concedido.
“Estando além do rio detestado,
Mover-me ora não pode: este preceito
90 Me foi, deixando o Limbo, decretado.
“Se por dama celeste hás sido eleito,
Como disseste, é vã lisonja agora;
93 O que requeres em seu nome aceito.
“Vai, pois: cingindo este homem sem demora
De liso junco, lava-lhe o semblante;
96 Toda a impureza seja posta fora.
“Cumpre que, quando ele estiver perante
O anjo, que do céu vier primeiro,
99 Névoa nenhuma os olhos lhe quebrante.
“Lá onde baixa o ponto derradeiro
Do mar batido, esta ilha tem viçoso
102 Juncal que alastra todo o seu nateiro.
“Não pode vegetal rijo ou frondoso
Ter vida ali; porque não dobraria
105 Ao embate das ondas caprichoso.
“Aqui tornar inútil vos seria.
Vereis ao sol, que surge, o melhor passo
108 Para subir do monte à penedia.” —
Sumiu-se. Ergui-me, então, sem mais espaço,
E em silêncio; olhos fitos no semblante
111 De Virgílio, amparei-me com seu braço.
— “Comigo, ó filho” — diz-me — “segue avante.
Atrás voltemos; pois daqui se inclina
114 O plano para o mar, que jaz distante.” —
Fugia ante a alva a sombra matutina;
Já nos ficava aos olhos descoberta,
117 Posto remota, a oscilação marina.
Pela planície andávamos deserta,
Como quem trilha a estrada, que perdera,
120 E teme não achar vereda certa.
Chegando à parte, onde não pudera
Do rocio triunfar o sol nascente,
123 Porque à sombra o frescor pouco modera,
Sobre a relva meu Mestre brandamente
As mãos ambas abriu: o movimento
126 Lhe noto e, o compreendo, diligente,
As lacrimosas faces lhe apresento.
Virgílio as cores restaurou-me ao gesto,
129 Que desbotara o inferno nevoento.
Vimos à erma praia a passo lesto:
Nunca sobre águas suas navegara
132 Homem que o mundo torne a ver molesto.
Cingido fui, como Catão mandara.
Portento! A humilde planta renascida,
Qual antes vi no solo, onde a arrancara,
136 Sem diferença, de súbito crescida.
NOTAS DO CANTO I
[1] 10. Calíope — Musa da epopéia.
[2] 11. Pegas, as filhas de Pierio, desafiaram as Musas para cantarem com elas e, vencidas, foram transformadas em pegas.
[3] 19. A bela estrela, Vênus.
[4] 21. Os Peixes, a constelação dos Peixes.
[5] 31. Um velho etc., Catão Uticense, que, para não entregar-se a Júlio César, suicidou-se em Útica.
[6] 40. Rio escuro e mesto, o Aqueronte.
[7] 79. Márcia, esposa de Catão.


Nenhum comentário:

Postar um comentário