PARAÍSO
CANTO XVIII
Beatriz conforta o Poeta. Cacciaguida mostra-lhe outros espíritos que combateram pela fé cristã. Sobem depois a Júpiter, ande estão as almas dos príncipes que governaram com justiça. Os espíritos se dispõem de maneira a desenhar palavras de conselho aos que governam; por último se compõem na forma de uma águia.
JÁ gozava em silêncio do seu verbo
Essa alma venturosa e eu cogitava,
3 O doce temperando pelo acerbo;
Mas aquela, que a Deus me encaminhava,
— “Muda o pensar; que perto” — me dizia —
6 “Eu sou do que injustiças desagrava.” —
Voltei-me à voz, que sempre me infundia
Valor: dos santos olhos a ternura
9 Descrever a palavra renuncia.
Não só a língua em vão dizer procura;
Mas sobre si tornando, desfalece
12 A mente sem socorro lá da altura.
Ora somente referir se of’rece
Que outro desejo, a santa contemplando,
15 Do coração, ao todo, desparece.
Como a delícia eterna, rebrilhando
Direta em Beatriz, me extasiava
18 Do gesto seu por um reflexo brando,
Com riso, de que a luz me subjugava,
— “Volve-te, escuta ainda; o Paraíso
21 Não stá só nos meus olhos” — me falava.
Como a paixão, no seu dizer conciso
Pelos olhos se exprime, na alma enquanto
24 Tolhe o prestígio seu todo o juízo,
Assim no flamejar do fulgor santo,
Voltando-me, o desejo vi patente
27 De aditar ao que disse ora algum tanto.
— “Na quinta estância da árvore, que, ingente,
Pelo cimo se nutre” — principia —
30 “Que frutos sempre dá, sempre é virente,
“Espíritos habitam, que algum dia
Nome tinham na terra tão famoso,
33 Que opimo assunto às Musas prestaria.
“Da cruz os braços olha cuidadoso:
Os que eu te nomear verás fulgindo,
36 Qual relâmpago em nuvem pressuroso.” —
Na Cruz vi perpassar, o nome ouvindo
De Josué, um traço rutilante,
39 Mal acabara a voz, presto surgindo.
Disse o grã Macabeu: no mesmo instante
Outro acorria, sobre si rodando,
42 Tange alegria esse pião brilhante;
Assim fez Carlos Magno, assim Orlando.
Atento, os movimentos seus esguardo,
45 Qual monteiro ao falcão no ar voando.
Seguiram-se Guilherme e Rinoardo;
Distingue o duque Godofredo a vista,
48 E logo após se assinalou Guiscardo.
Depois com os outros esplendores mista
Provou-me a alma ditosa, que há falado,
51 Ser nos coros do céu sublime artista.
Voltei-me então para o direito lado
Por conhecer de Beatriz o intento,
54 Em palvras ou gestos declarado.
Nos olhos puros seus vi tal contento,
Fulgor tal, que excedia o seu semblante
57 Quando de antes prendeu-me o pensamento.
Como, ao sentir prazer inebriante,
Cada vez que o bem faz homem conhece
60 Ir da virtude na vereda avante,
Assim mais amplo o arco me parece
Do círc’lo, em que vou co’o céu girando
63 Ao ver quanto prodígio tal recresce.
Tão presto, como em nívea face, quando
A chama do pudor se acende, volta
66 A cor a ser qual de antes, branqueando,
Pelo doce candor, que a vista envolta
Me teve, conheci que a sexta estrela
69 Nos recebera a mim e a minha escolta.
De Júpiter na esfera argêntea e bela
O cintilar de amor, que ali resplende,
72 Linguage’ humana aos olhos me revela.
De aves qual bando, que se estreita ou estende,
Do rio junto à borda e que à verdura
75 Do pascigo, a folgar os vôos tende,
Tal em seus lumes grei ditosa e pura,
Adejando, cantava e descrevia
78 De D, de I, de L uma figura.
Ao compasso dos hinos se movia
E em silêncio quedava, se detendo,
81 Quando alguma das letras concluía.
Pegásea Diva, ó tu, que, concedendo
A glória ao gênio, lhe dilatas vida,
84 Cidades, reinos imortais fazendo!
Brilha em mim! por que seja referida
Cada figura, qual me foi presente!
87 Faz tua força em meus versos conhecida!
E cinco vezes sete claramente
Vogais e consoantes vi, notando
90 Cada qual pelo traço refulgente:
Gustave Doré
“DILIGITE JUSTITIAM” indicando
Verbo e nome primeiros na escritura;
93 “QUI JUDICATIS TERRAM” terminando.
Colocando-se assim cada luz pura,
No fim pausaram no vocáb’lo quinto:
96 Sobre o argento de Jove ouro fulgura.
De outros lumes, que descem, vi distinto
Do M o cimo: cantam, lá pousados,
99 Bem que os atrai ao divinal precinto.
Como carvões ardentes encontrados
De centelhas um jorro de si lançam,
102 Presságios por estultos venerados,
Muitos mil fogos para o ar avançam,
Subindo à altura, que lhes há marcado
105 O Sol, de quem beleza e brilho alcançam.
Já, cada qual ao seu lugar tornado,
De Águia o colo a meus olhos se mostrava,
108 Rematando em cabeça, desenhado.
Gustave Doré
Guia não teve o artista que os traçava:
É seu todo o primor, toda a mestria,
111 Que em cada ninho forma própria grava.
A santa grei, porém, que parecia
De ornar de c’roa o M estar contente,
114 Movendo-se, a figura perfazia.
Quanta jóias, ó astro refulgente,
Mostraram-me provir justiça humana
117 Do céu de que és ornato permanente!
À Mente, pois, suplico de que emana
O moto e a força tua, atenta veja
120 Da névoa a causa que o teu brilho empana;
Gustave Doré
E de ira inda uma vez tomada seja
Contra os que mercadejam no seu templo,
123 Que do sangue dos mártires flameja.
Celestial milícia, que eu contemplo,
Roga por esses, que ora estão na terra
126 Transviados, seguindo hórrido exemplo.
Com gládio outrora se travava a guerra;
Hoje em tirar o pão, que Deus tem dado,
129 Dos combatentes o valor se encerra.
Tu que escreves pra ser logo emendado
Pensa que Pedro e Paulo hão ressurgido,
132 Pela vinha morrendo que hás talado.
Tu bem podes dizer: — “Devoto hei sido
Do que, ao deserto dando tanto apreço,
Sofreu martírio à dança oferecido:
136 O pescador e Paulo não conheço.” —
NOTAS DO CANTO XVIII
[1] 28. Da árvore que, ingente, pelo cimo se nutre, o Paraíso que recebe vida de Deus.
[2] 38. Josué, sucessor de Moisés na chefia do povo hebreu e que conquistou a
Terra Prometida.
[3] 40. O grã Macabeu, Judas Macabeu que combateu contra Antíoco.
[4] 43-48. Orlando, paladino de Carlos Magno; Guilherme, d’0range; combateu contra os infiéis; Rinoardo, companheiro de Guilherme; Godofredo de Bouillon, conquistou a cidade de Jerusalém; Roberto Guiscardo, libertou as Apúlias dos Sarracenos, no século XI.
[5] 49-51. Depois com os outros etc., Cacciaguida cantou, provando que era um sublime artista.
[6] 82. Pegásea Diva, a musa Caliope.
[7] 9 1-93. Diligite etc., amai a justiça vós que governais o mundo.
[8] 107. Águia etc., a águia é o símbolo da justiça e da monarquia.
[9] 130. Tu que escreves etc., alusão ao papa Bonifácio VIII, que escrevia as censuras, para emendá-las depois de ter recebido dinheiro.
[10] 134-136. Do que etc., a moeda florentina, o florim, trazia a efígie de S. João Batista, que sofreu o martírio por causa da dança de Salomé.
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