sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 924 : A DIVINA COMÉDIA

PARAÍSO
CANTO V
Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída com oferecimentos de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos. Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo. Um espírito fala ao Poeta.
SE no fogo do amor te resplandeço
Em modo, que o terreno amor precede;
3 Se aos olhos teus a força desfaleço;
“Não te espantes: efeito é que procede
Desse perfeito ver, que o bem compreende,
6 E, o compreendendo, em se apurar progrede.
“Já patente me está quanto resplende
Na inteligência tua a Luz eterna,
9 Que, apenas vista, sempre amor acende;
“E, se outro objeto humano amor governa,
Vestígio dela é só mal percebido,
12 Só transluzindo em sua forma externa.
“Saber queres se um voto não cumprido
É de outras obras resgatado, e tanto,
15 Que em juízo de Deus fique absolvido.” —
Começou Beatriz desta arte o canto;
E, como quem no discorrer não pára,
18 Seguiu assim no seu elóquio santo:
“O mor bem que ao universo Deus doara,
O que indicara mais sua bondade
21 O que em preço mais alto avaliara,
“Foi do querer, por certo, a liberdade,
Que a toda criatura inteligente
24 Há dado em privativa faculdade.
“Daqui, por dedução, fica evidente
Do voto a alta valia, quando é feito
27 Por acordo entre Deus e a humana mente.
“Por contrato, entre Deus e o home’ aceito,
Esse tesouro é vítima imolada,
30 Que ao sacrifício vai com ledo aspeito.
“Pode ser porventura compensada?
Se cuidas usar bem do que ofertaste,
33 Crês fazer bem com prata mal ganhada.
“Certo do ponto capital ficaste;
Com a dispensa a Igreja, parecendo
36 Em tal caso contrário ao que escutaste,
“Convém, que um pouco à mesa te detendo,
Para o rijo manjar, que hás ingerido,
39 Socorro aguardes, que te dar pretendo.
“Ao que te explico atento presta ouvido
E guarda-o na alma; pois não dá ciência
42 Ouvir o que depois fica no olvido.
“Exige do sagrado voto a essência
Aquele objeto em sacrifício dado
45 E do próprio contrato a consistência.
“Jamais pode ser este obliterado,
Ainda que infringido: já bem clara
48 Demonstração sobre este ponto hei dado.
“Lei rigorosa a Hebreus determinara
Fazer pia oblação; mas concedida
51 A permuta da oferta lhes ficara.
“Da matéria do voto é permitida
Conversão quando ensejo se oferece,
54 Sem ser por isso falta cometida.
“Mas não se muda, quando bem parece,
O fardo; só se a Igreja, tendo usado
57 Das chaves de ouro e prata, o concedesse.
“Crê que toda permuta é passo errado,
Quando o antigo no novo não se inclua,
60 Bem como quatro em seis vês encerrado.
“Se o voto é tal na gravidade sua,
Que obrigue a se inclinar toda balança,
63 Outro voto não há, que o substitua.
“Não contraí, mortais, votos por chança!
Cumpri-os, mas não Jefté imitando,
66 A quem deu louco voto a desesp’rança.
“— Fiz mal! — dissesse ao voto seu faltando,
Por não fazer pior cumprindo-o. Estulto
69 Foi o potente Rei dos gregos, quando
“À filha fez chorar seu belo vulto
E à piedade moveu quantos ouviram
72 Falar daquele abominável culto.
“A razões pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos! não sêde pluma a qualquer vento!
75 As nódoas com toda a água se não tiram!
“Tendes o Velho e o Novo Testamento
E da Igreja o pastor, que os passos guia:
78 Que mais quereis por vosso salvamento?
“Se má cobiça o peito vos vicia,
Homens sêde e não brutos animais:
81 Que entre vós o Judeu de vós não ria.
“Como o cordeiro simples não façais,
Que contra si combate petulante,
84 Da mãe o leite não querendo mais.” —
Beatriz assim disse. Eis anelante
E arrebatada em êxtase voltou-se
87 À parte, onde o universo é mais brilhante.
Ante o enlevo em que o gesto transmutou-se,
Calou-se o meu desejo impaciente:
90 De outras questões, já prestes, refreou-se.
Como a seta, que o alvo de repente
Atinge antes que a corda esteja quieta,
93 No céu segundo entramos velozmente.
Tão leda eu via Beatriz dileta,
Daquele céu nas luzes penetrando,
96 Que mais vivo esplendor mostra o planeta.
E se a estrela sorriu, se transformando,
Como não fiquei eu, que fez natura
99 Mudável, impressões todas tomando?
Como viveiro de água mansa e pura,
Pela esp’rança, de pasto, que se of’reça,
102 Sofregamente o peixe o anzol procura,
Yates Thompson
Gustave Doré
Mais de mil esplendores vindo à pressa,
— “Eis aí quem nos traz de amor aumento!” —
105 A voz de cada qual nos endereça.
De cada sombra o alegre sentimento,
Em se acercando a nós, se denuncia
108 No fulgor do seu claro luzimento.
Quão sôfrego o desejo não seria
Em ti leitor, se acaso interrompesse
111 A narração de quanto então se via?
Imaginas, portanto, o que eu tivesse
De conhecer aquela grei formosa,
114 Tanto que ante os meus olhos aparece.
— “Ó criatura, que assim vês ditosa
Os tronos do eternal triunfo, inda antes
117 De finda a terreal guerra afanosa,
“Nos lumes, que no céu há mais brilhantes,
Ardemos: te darei, se as pretenderes,
120 Ao teu desejo informações bastantes.” —
Assim falou. — “Responde que assim queres.” —
A Beatriz ouvi — “diz com franqueza,
123 E crê como divino o que entenderes.”
— “O ninho tens, já vejo com certeza,
Na luz eterna: o seu fulgor revela
126 Dos olhos teus, sorrindo-te a viveza.
“Mas não sei quem tu és, ó alma bela,
Nem por que por degraus tens esta esfera,
129 Que aos mortais nos clarões de outra se vela.”
Assim disse, voltado à luz que houvera
Primeira a voz alçado: refulgindo,
132 Mais coruscante a vi ao que antes era.
Bem como o sol os lumes encobrindo
No seu próprio esplendor quando esvaece
135 As cortinas que estavam-nos cingindo,
Da alegria no excesso desparece
Nos próprios raios a figura santa.
Na sua luz envolta que recresce,
139 Disse o que o canto que se segue canta.
NOTAS DO CANTO V
[1] 56-57. Só se a Igreja etc., só se a Igreja, que possui a chave de prata (da ciência) e de ouro (da autoridade) o permitir.
[2] 65. Jefté, juiz de Israel, fez o voto, se vencesse os Amonitas, de sacrificar a primeira pessoa que encontrasse no caminho; e esta foi a sua filha.
[3] 69. O potente rei dos Gregos, Agamenon prometeu aos deuses o que possuía de mais belo. Chorou depois a beleza da sua filha Ifigênia.

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