PURGATÓRIO
CANTO XX
Os dois poetas ouvem uma alma recordar exemplos de pobreza honesta e da generosidade benfazeja. É Hugo Capeto, fundador da casa dos reis da França, o qual censura asperamente os seus descendentes. Ouve-se, no entanto, tremer o monte e cantar “Gloria in excelsis Deo.”
EM luta, o bem querer ao mau se alteia.
Por contentar essa alma, eu, descontente,
3 Da água tirei a esponja, inda cheia.
Sigo os passos do guia diligente,
Do monte à extrema borda caminhando,
6 Como em muro entre ameias, cautamente.
O espaço mais largo enchia o bando,
Que a avareza, do mundo atroz imiga,
9 Expurga, pranto em fio derramando.
Maldita sempre seja, Loba antiga,
Mais do que as outras feras cobiçosas!
12 Jamais a fome tua se mitiga!
Ó céu, cuja carreira portentosa
As condições se crê reger da vida,
15 Quando virá quem lance a besta ascosa?
A passo lento e escasso era a subida,
Atento eu indo à turba, que exprimia
18 Por carpir lamentoso a dor sentida.
Gustave Doré
Eis ante nós dizer: — “Doce Maria!” —
Uma voz escutei no amargo pranto,
21 Qual mulher que no parto a dor crucia.
Acrescentou: — “Bem pobre foste e tanto,
Que à luz trouxeste lá no humilde hospício
24 Do seio virginal o fruto santo.” —
E logo após ainda: — “Ó bom Fabrício,
Com virtude antes pobre ser quiseste
27 Do que a opulência possuir com vício.” —
De tal prazer meu coração se veste
Ouvindo, que avançava pressuroso
30 Por que ao perto, maior atenção preste.
Também contava esse ato generoso,
Que em prol das virgens Nicolau fizera
33 Para guardar-lhes puro o estado honroso.
— “Alma, que tão bem falas, diz sincera,
Quem foste?” — lhe disse eu — “Por que somente
36 A tua voz a virtude aqui venera?
“Se eu à vida tornar, que brevemente
Levar-me deve ao suspirado porto,
39 Em te ser grato ficarei contente.” —
E ele: — “Falarei, não por conforto
Lá do mundo esperar, mas porque tanta
42 Graça refulge em ti antes de morto.
“Estirpe fui dessa maligna planta
Que o solo esteriliza à cristandade:
45 Se frutos bons produz, fato é que espanta.
“A vingança, se houvessem faculdade,
Lilla, Bruges, Conai, Grandja tomaram;
48 Férvido a peço à Suma Potestade.
“Na terra Hugo Capeto me chamaram:
Dos Filipes fui tronco e dos Luíses,
51 Que novamente a França dominaram.
“Foi meu pai carniceiro. Os infelizes
Antigos Reis progênie não deixando,
54 Exceto um monge, às minhas mãos felizes,
“Parar daquele reino veio o mando.
Tanto prestígio tinha, tal pujança
57 Dos povos na vontade fui ganhando,
“Que a c’roa o meu querer cingir alcança
Do filho meu à fronte, em que começa
60 A prole ungida desses Reis de França.
“O provençal grã dote havendo, cessa
Na raça minha a prístina vergonha:
63 Somenos, mas aos bons não fora avessa.
“Rapinas pela força e ardis, que sonha
Começando, invadiu por penitência
66 Pontois, Normandia com Gasconha.
“Carlos, Itália entrando, em penitência
Vitimou Conradino; e triunfante
69 Ao céu mandou Tomás, por penitência.
“Em tempo, do presente não distante,
Inda outro Carlos vir de França vejo
72 E fama a si e aos seus dar mais sonante.
“Sai sem armas; traz só naquele ensejo
Lança de Judas, que a Florença aponta:
75 Rasga-lhe o peito, como é seu desejo.
“Terás não terras, mas pecado e afronta,
Que se lhe há de tornar tanto mais grave,
78 Quanto ele a tem de pouco preço em conta.
“Outro, que preso sai da própria nave,
Vejo a filha vender, como fizera
81 Aos escravos pirata: ó pai suave!
“Avareza! o que mais de ti se espera,
Se o meu sangue a tal raiva hás arrastado,
84 Que te deu sua carne em pasto, ó fera?
“Para o mal igualar, porvir, passado,
Entrando Alagni flor-de-lis se ostenta,
87 E Cristo em seu Vigário é cativado.
“Injúrias vejo novas que exp’rimenta,
Fel, vinagre sorver o vejo ainda
90 E entre vivos ladrões ter morte lenta.
“Vejo o novo Pilatos, que, não finda
A sanha sua, sem decreto assalta
93 O Templo aceso na cobiça infinda.
“Senhor meu! Pois que excesso nenhum falta,
Quando ante a punição serei ditoso,
96 Que oculta, o teu juízo adoça e exalta?
“Quanto ao que me inquiriste curioso,
As palavras, que, há pouco, eu dirigia
99 Do Spírito Santo à Esposa fervoroso,
“São nossas orações enquanto é dia.
Mas contrários exemplos invocamos,
102 Quando a sombra da noite principia.
“Então Pigmalião nós recordamos
Que foi traidor, ladrão e parricida
105 A sua sede de ouro condenamos.
“E a miserável condição de Mida,
Do rogo seu estulto resultado,
108 Sempre do mundo inteiro escarnecida.
“De Acam o louco feito é memorado.
Que os despojos roubara, e ainda a ira
111 De Josué receia amendrontado.
“Com seu marido acusa-se Safira
E louva-se o mau fim de Heliodoro.
114 Por todo o monte imenso brado gira
“Contra o que tirou vida a Polidoro.
— Dize do ouro o sabor, Crasso avarento! —
117 Também clamamos todo nós em coro.
“Qual murmura, qual grita em seu lamento,
Segundo o afeto que o estimula e agita,
120 Segundo é fraco ou forte o sentimento.
“Eu único não era, pois, que em grita
O bem, que ao dia é próprio ia dizendo:
123 Não alçava outro perto a voz bendita.” —
Essa alma já deixáramos, fazendo
Esforço por vencer a altura ingente,
126 Que adiante se estava oferecendo,
Eis tremer sinto o monte de repente.
O coração no peito se me esfria,
129 Qual réu, que à morte arrasta-se palente.
Delos, por certo, assim não se movia,
Quando por ninho a preferiu Latona,
132 Que os dois olhos do céu parir queria.
De toda parte um brado então ressona
Tanto, que o Mestre, para mim voltando,
135 — “Não há risco” — me diz — “teu Guia o abona!”
Gloria in excelsis Deo — era entoado,
Quanto a voz perceber foi permitido
138 Do ponto, a que o rumor me foi levado.
Quedos, como os pastores tendo ouvido
À vez primeira outrora aquele canto,
141 Ficamos té findar moto e soído.
Depois seguimos no caminho santo,
Vendo as almas prostradas sobre a terra,
144 Sempre a verter o costumado pranto.
E se a memória nisto em mim não erra,
Jamais desejo, que a ignorância acende,
147 Na mente me excitara tanta guerra,
Quanto naquele instante em mim contende.
Nem pela pressa, eu perguntar ousava,
Nem o que ouvia o espírito compreende.
151 Tímido assim e pensativo andava.
NOTAS DO CANTO XX
[1] 10. Loba antiga, a avareza.
[2] 23. Humilde hospício, a gruta de Belém, onde nasceu Jesus.
[3] 25. Bom Fabrício, C. Fabrício, general romano, que recusou o dinheiro que o inimigo de Roma lhe oferecia.
[4] 32. Nicolau, S. Nicolau, bispo de Mira, que dotou várias jovens pobres.
[5] 43. Estirpe fui, Hugo Capeto, fundador da dinastia dos de França.
[6] 52. Foi meu pai, etc. Segundo a tradição, Hugo Capeto, filho de um carniceiro, desposou a filha do último rei carlovíngio.
[7] 61. O provençal, Carlos I de Anjou por casamento herdou a Provença.
[8] 67. Carlos, Itália entrando, Carlos I de Anjou, conquistou o reino de Nápoles, mandou matar a Conradino de Suábia e, segundo uma tradição, fez envenenar a S. Tomás de Aquino, quando este se dirigia para o concilio de Lião.
[9] 71. Outro Carlos, de Valois, que foi a Florença em veste de pacificador e expulsou os Brancos, entre os quais Dante.
[10] 86. Entrando Alagni etc., o papa Bonifácio VIII, em 1303, por ordem de Filipe o Belo, foi aprisionado em Alagni.
[11] 103. Pigmalião, matou a traição seu tio Siqueu para roubá-lo.
[12] 106. Mida, rei mitológico, recebeu a faculdade de transformar em ouro tudo
o que tocava, morreu de fome.
[13] 109. Acam, guerreiro israelita, depois da conquista de Jericó, desobedecendo às ordens de Josué, escondeu o que saqueou e foi condenado à morte.
[14] 112. Safira e seu marido Ananias, querendo roubar o dinheiro pertencente à comunidade cristã, foram fulminados.
[15] 113. Heliodoro, entrara no templo de Jerusalém para roubar, mas foi expulso por um cavalo a patadas.
[16] 115. O que tirou a vida a Polidoro, Polinestor, rei da Trácia matou a Polidoro, filho de Príamo, para roubá-lo.
[17] 116. Crasso, romano, homem muito rico e avarento.
[18] 130. Delos, ilha do mar Egeu. Segundo a mitologia, era instável, antes que nela se estabelecesse Latona, que deu à luz Apolo e Diana.
[19] 136. Glória in excelsis Deo, é o canto dos anjos na noite em que nasceu Jesus.
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