sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 914 : A DIVINA COMÉDIA

PURGATÓRIO
CANTO XXVIII
O Poeta descreve a beleza do Paraíso Terrestre. Chegam Dante, Virgílio e Estácio perto de um rio que os impede de prosseguir. Do outro lado do rio aparece uma mulher de maravilhosa beleza que discorre a respeito da condição do lugar, resolvendo as dúvidas que Dante lhe propõe.
VAGAR já nos recessos desejando
Da selva divinal, vivida espessa,
3 Que ao novo dia o lume faz mais brando,
Daquela encosta a me afastar dou pressa.
Pela veiga me interno a passo lento,
6 Doce aroma sentindo, que não cessa.
Do ar, que circulava, o doce alento,
Mas sempre igual, a fronte me afagando,
9 Tinha o bafejo de suave vento.
As folhas, molemente balouçando,
Do santo monte à parte se inclinavam,
12 A que a sombra primeira vai baixando.
Mas, no meneio seu, não se acurvavam
Em modo, que na rama aos passarinhos
15 Os hinos perturbassem, que entoavam.
Pousados ledamente entre os raminhos
Saudavam com seus cantos a alvorada
18 Da fronde os acordando aos murmurinhos;
Assim de Chiassi no pinhal soada
De ramo em ramo corre quando a amara
21 Prisão, abre ao mestre Eolo a entrada.
Com demorado andar eu caminhara
Na selva antiga tanto, que não via
24 Mais o lugar, por onde penetrara.
Eis andar um ribeiro me tolhia,
Que, à sestra deslizando-se, beijava
27 A ervinha, que às margens lhe crescia:
O cristal dessa linfa superava
Da terra água a mais pura e transparente;
30 Quanto continha em si patente estava.
Entanto, pela sombra permanente,
Que luz da lua ou sol nunca atravessa,
33 Negreja aquela plácida corrente.
O pé detenho, e a vista se arremessa
Além do humilde rio, contemplando
36 Primores, com que maio se adereça,
Então se of’rece aos olhos, como quando
De súbito um portento surge à mente,
39 De outro pensar qualquer a desviando,
Uma dama sozinha de repente,
Que, cantando, escolhia, de entre as flores,
42 Que o chão cobriam de matiz ridente.
— “Bela dama, que sentes os fervores
Do amor divino, se por teu semblante
45 Da tua alma julgar devo os ardores” —
Assim falei — “se caminhar avante
Até perto do rio te aprouvera,
48 Te entendera esse canto inebriante.
“Tão linda, em tal lugar, lembras qual era
Prosérpina, ao perdê-la a mãe querida
51 E ao perder também ela a primavera.” —
Gustave Doré
Qual menina, que em danças entretida,
Gira ligeira em terra deslizando,
54 Os passos troca e volve-se garrida,
Sobre o esmalte das flores se voltando,
A mim se dirigiu, como donzela
57 Que vai, modesta, os olhos abaixando.
Quanto o desejo meu sôfrego anela
Acercou-se e da angélica toada
60 Distinta pude ouvir a letra bela.
Logo em chegando à borda em que banhada
A erva era da linfa cristalina,
63 De olhar-me fez a graça assinalada.
Não creio que na vista peregrina
De Vênus lume tal resplandecesse
66 Ao feri-la de amor seta mali’na.
De fronte aos olhos a sorrir se of’rece.
As mãos de lindas flores tendo plenas,
69 De que espontâneo o solo se guarnece.
A nós três passos interpõem apenas:
O Helesponto que Xerxes transcendera,
72 Lição em que há para os soberbos penas,
Em Leandro mais ódio não movera,
Quando entre Sesto e Ábidos nadava,
75 Do que o rio que tanto estorvo me era.
— “Sois recém-vindos” — ela assim falava —
“Meu riso ao ver-vos no lugar eleito
78 À humana raça, quando à luz brotava,
“Talvez vos maravilhe por suspeito.
Se lembrado o salmo Delectasti,
81 De todo o engano vos será desfeito.
“Tu, que estás adiante e me falaste
Que mais ouvir desejas? Eis-me presta
84 Explicação a dar-te, quanto baste.” —
— “Esta água” — torno — “e o som desta floresta
Opõem-se à minha fé na maravilha.
87 Que eu tinha ouvido e que é contrária a esta.” —
— “Eu te direi a causa, de que é filha
A razão que te move essa estranheza;
90 Terás, em vez de névoa, a luz que brilha.
“O Bem, que em si somente se embeleza,
Apto ao bem fez o home’; em arras deu-lhe
93 De eterna paz à edênica riqueza.
“A culpa sua este alto dom tolheu-lhe;
A culpa sua em prantos, em desgostos
96 Os prazeres, os risos converteu-lhe.
“A fim de que efeitos, que, compostos
São de eflúvios das águas e da terra,
99 Para o calor acompanhar dispostos,
“Ao homem não fizessem qualquer guerra,
Tão alta há se elevado esta montanha,
102 Que é livre desde o ponto onde se encerra.
“E porque todo o ar, por força manha,
Roda ao impulso do motor primeiro,
105 Quando estorvo nenhum seu giro acanha,
“Este cimo elevado e sobranceiro
Pelo éter vivo ao moto é tão batido,
108 Que o denso bosque remurmura inteiro:
“E sendo em cada um tronco percutido,
A virtude transmite fecundamente
111 Ao ar, que a esparge, em torno revolvido.
“A terra, como é apta, circunstante
Por si ou por seu céu plantas concebe
114 De gênero e virtude variante.
“E pois, já claramente se percebe
Como planta há viçosa e florescente,
117 Quando o germe a terra não recebe.
“Sabe que até jardim toda semente
Do que a terra produz em si compreende
120 E contém fruto inoto à humana gente.
“Esta água de uma origem não depende,
Que alimente vapor que em chuva desça,
123 Como rio que seca ou que se estende.
Gustave Doré
“De fonte certa vem que nunca cessa,
Pois por querer que Deus tanta dimana,
126 Quanta aqui por canais dois se arremessa.
“A que neste álveo que ora vês, se encana
Memória do pecado desvanece,
129 Aviva a outra a da virtude humana.
“É Letes, se por ela o mal se esquece,
Eunoé quando lembra: atuam quando
132 O gosto de uma e de outro homem conhece.
“Saber igual aos outros comparando
Não existe ao desta água. Ao teu pedido
135 Satisfação hei dado assim falando.
“Corolário, porém, lhe seja adido:
Não receio que assim te desagrade,
138 Indo além do que fora prometido.
“Poetas que cantavam de ouro a idade
E sua dita, em Parnaso, certamente
141 Sonharam desta estância a f’licidade.
“Estirpe humana aqui fora inocente;
Eterna primavera aqui domina;
144 Foi este néctar, que inventou sua mente.” —
Então a vista aos Vates se me inclina.
Um sorriso em seus lábios se revela,
Esse conceito ouvindo, em que termina.
148 Rosto volvi depois à dama bela.
NOTAS DO CANTO XXVIII
[1] 19. Chiassi, localidade (hoje destruída) perto de Ravena, onde ainda há um grande pinheiral.
[2] 21. Éolo, rei dos ventos.
[3] 40 Uma dama, Matelda, como Dante dirá no Canto XXXIII, v. 119. Para a maior parte dos comentadores é Matilde, condessa de Canossa.
[4] 50. Prosérpina, filha de Ceres que foi raptada por Pluto quando colhia flores no vale do Etna.
[5] 71. O Helesponto, o estreito dos Dardanelos que Xerxes, rei da Pérsia, atravessara com uma ponte de barcos para invadir a Grécia, e que, derrotado, teve de atravessar novamente.
[6] 73. Leandro, etc. Leandro todas as noites atravessava a nado o Helesponto, da sua cidade Ábido a Sesto, onde morava a sua amante Heros.
[7] 80. Delectasti etc., Salmo XCI, 5.
[8] 130. Letes, o rio do esquecimento.
[9] 131. Eunoé, o rio da boa recordação.

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