sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 929 : A DIVINA COMÉDIA

PARAÍSO
CANTO X
Depois de admirar a infinita sabedoria de Deus na criação do Universo, narra o Poeta como sem aperceber-se achou-se elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles, S. Tomás de Aquino, revela o nome dos seus companheiros.
O PODER inefável e primeiro,
O Filho a contemplar co’ Amor sublime,
3 De um e outro, eternal, vindo o terceiro,
Quanto à vista e à razão nossa se exprime
Com tal ordem criou, que, o efeito vendo,
6 De adorar seu Autor ninguém se exime.
As esferas, leitor, olhos erguendo
Nota a parte, onde estão dois movimentos
9 Um para o outro oposição fazendo.
E começa a mirar de arte os portentos,
Que tanto dentro em si o senhor ama,
12 Que lhes tem sempre os olhos seus atentos.
Vê como desse ponto se derrama
Em linha oblíqua, o círc’lo, que transporta
15 Os planetas que o mundo aguarda e chama.
Se lhes assim, não fosse a estrada torta,
Muita força no céu fora perdida
18 E aqui potência quase toda morta.
Se fora essa vereda preterida
Mais ou menos, ficara transtornada
21 A ordem no universo estatuída.
Ora leitor, meditação pausada
Faz de quanto comigo prelibaste:
24 Leda a mente hás de ter, não saciada.
Dou-te iguaria: come, pois, se praz-te.
A matéria, em que escrevo, não consente,
27 Nem por instantes, que a atenção se afaste.
Da natura o ministro mais potente
Que a influência do céu na terra imprime
30 E o tempo mede com sua luz fulgente,
À parte, que outro verso acima exprime,
Se unindo, para o ponto se volvia,
33 Onde mais cedo as trevas nos dirime.
Já no seu seio estava e o não sabia,
Como não pode alguém seu pensamento
36 Saber, quando inda à mente não surgia.
E Beatriz, em quem notava aumento
De bem para melhor, tão de repente,
39 Que o tempo fora ante o seu ato lento,
De si mesma quanto era refulgente!
O que era lá no sol onde eu me entrara,
42 Não por cor, por seu brilho mais nitente,
Yates Thompson
Posto que arte, uso, engenho me ajudara
Descrever por imagens não pudera;
45 Mas crer se pode e ver-se desejara.
Não se estranhe, se baixa parecera,
Querendo a tanto alar-se, a fantasia;
48 Além do sol ninguém olhos erguera.
Quarta família aqui resplandecia
Do Sumo Pai, que sempre da Trindade
51 No inefável spetáculo a sacia.
E disse Beatriz: — “Tanta Bondade
Humilde ao Sol dos anjos agradece,
54 Que ao sol sensível te alça à claridade.” —
Peito mortal jamais ardor aquece
De sentir tão devoto e tão piedoso,
57 Que a Deus a gratidão inteira expresse,
Quanto é meu ao convite carinhoso.
E em tanto enlevo o coração se acende,
60 Que a Beatriz olvida, fervoroso.
Não lhe despraz, e no seu riso esplende
Tanto brilho dos olhos expressivos,
63 Que do êxtase profundo me desprende.
Fulgores então vi claros e vivos,
De nós centro de si c’roa fazendo,
66 Mais suaves em voz que em luz ativos.
A filha de Latona se movendo
Vemos assim de um cinto rodeada,
69 No ar úmido as cores, se mantendo.
Dos céus a corte, donde volto, ornada
De jóias stá sublimes e formosas:
72 Só nos céus pode a estima lhes ser dada.
As vozes eram tais, que ouvi donosas.
Quem não tem plumas para ir lá voando
75 Pergunte a um mudo cousas portentosas.
Aqueles sóis, em torno a nós cantando,
Volveram-se três vezes: semelharam
78 Astros em roda aos pólos circulando.
Damas imitam, que no baile param,
Em silêncio outras notas esperando
81 Para seguir na dança que encetaram.
E uma voz do seu seio disse: — “Quando
Da Graça o raio em que o amor se acende
84 Sublime, pelo amor se acrescentando,
“Multiplicado em ti tanto resplende,
Que te conduz pela celeste escada,
87 Que a subir torna quem de lá descende,
“O que à sede em que tens a alma abrasada
Vinho negasse, irmão, livre não fora,
90 Qual linfa de correr embaraçada.
“Saber desejas como a c’roa enflora,
Que cinge, contemplando-a a pulcra Dama,
93 Que para o céu te guia protetora.
“Um anho fui da santa grei que chama
De Domingos a voz pelo caminho,
96 Onde prospera só quem mal não trama.
Yates Thompson
“Tomás de Aquino sou; me está vizinho,
À destra de Colônia o grande Alberto
99 A quem de aluno e irmão devo o carinho.
“Se dos mais todos ser desejas certo,
Na santa c’roa atenta cuidadoso,
102 A tua vista a voz siga-me perto.
“Nesse esplendor sorri-se jubiloso
Graciano que num e noutro foro
105 Di’no se fez de ser no céu ditoso.
“Aquele outro ornamento deste coro
Foi Pedro: como a pobre a of’renda escassa,
108 À Santa Igreja deu rico tesouro.
“A quinta luz, que as mais em lustro passa
Se acende em tanta luz, que anela o mundo
111 Saber se goza da celeste Graça.
“O alto esp’rito encerra, tão profundo,
Que se o Verbo de Deus é verdadeiro,
114 De saber tanto não se alçou segundo.
“Ao lado seu lampeja esse luzeiro,
Que os anjos, seu mister, sua natura
117 Em conhecer na terra foi primeiro.
“Sorri na luz menor, serena e pura,
Dos séculos cristãos esse advogado
120 De Agostinho tão útil à escritura.
“Se os olhos da tua mente acompanhado
De luz em luz me tens nestes louvores
123 Saber já tens da oitava desejado.
“Do Sumo Bem se enleva nos fulgores
Essa alma santa, havendo demonstrado
126 As mentiras do mundo e os seus rigores;
“Jaz daquela alma o corpo despojado
Em Cieldauro; e ela veio à paz divina
129 Após martírio e exílio amargurado.
“Mais longe, em cada flama purpurina,
Beda, Isidoro estão, Ricardo esplende,
132 Que além do humano o pensamento afina.
“Esse, de quem tua vista se desprende
A mim tornando, achou, grave e prudente,
135 Que morte pronta um grande bem compreende:
“É Siger, que assim luz eternamente.
Na rua de Fouare lera outrora
138 Verdades, que ódio hão provocado ingente.” —
E qual relógio, que nos chama em hora,
Em que, desperta, do Senhor a Esposa
141 Matinas canta e o seu amor implora;
Que, no girar das rodas, tão donosa
Nota faz retinir, de amor enchendo
144 Devota alma, que o escuta fervorosa;
O glorioso círc’lo, se movendo,
Assim vi eu, com tal suavidade
E doçura de vozes, que comprendo
148 Só haja iguais do céu na eternidade.
NOTAS DO CANTO X
[1] 49. Quarta família, as almas que estão no Sol, que é o quarto Céu.
[2] 67. A filha de Latona, Diana ou a lua.
[3] 9 7. Tomás de Aquino, Santo teólogo (1225-1274).
[4] 9 8. De Colônia o grande Alberto, o célebre teólogo Alberto Magno.
[5] 104. Graciano, de Chiusi, em Toscana, escreveu no século XII um volume de Cânones eclesiásticos, que foi chamado o Decreto de Graciano.
[6] 107. Pedro, Pedro Lombardo, bispo de Paris, morto em 1164 que, ao oferecer à Igreja o seu livro “Sentenciaram” comparava-se à viúva do Evangelho de S. Lucas, XXI.
[7] 109. A quinta luz, o sapiente rei Salomão, filho de Davi.
[8] 115-117. Esse luzeiro etc. Dionísio Aereopagita, que escreveu uma obra “De Coelesti Hierarchia.”
[9] 119-120. Esse advogado etc., Paulo Orósio, que, aconselhado por Santo Agostinho, escreveu a História, em defesa da religião cristã.
[10] 125-128. Essa alma santa etc. Severino Boécio, autor do livro “De consolatione philosophiae”, aprisionado e, depois, morto por Teodorico em 524.
[11] 131. Beda, bispo inglês, Ricardo, padre de Escócia, Isidoro, S. Isidoro de
Sevilha, os três doutos teólogos.
[12] 136. Siger de Brabante, professor de teologia na Universidade de Paris no século XIII, a qual tinha a sua sede na Rua Fouare.

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