sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 947 : A DIVINA COMÉDIA

PARAÍSO
CANTO XXVIII
Dante volve os olhos para Beatriz, que estava atrás dele; depois mira para a frente e vê um ponto brilhantíssimo, em torno do qual se movem nove círculos de luz, que giram mais rapidamente e são mais brilhantes quanto mais próximos estão dele. Aquele ponto é Deus; os círculos são os coros angélicos.
DEPOIS que acerca do existir presente
Dos míseros mortais mostrou verdade
3 Aquela a que emparaísa a mente,
Como quem vê no espelho a claridade
De tocha, que de trás esteja acesa,
6 Suspeita inda não tenho da verdade;
E, para olhar voltado, tem certeza
De que o vidro é fiel ao que apresenta,
9 Como o canto é do metro a natureza:
Assim minha memória representa
Que eu fiz, nos belos olhos me enlevando,
12 Com que amor cativou minha alma isenta.
De os contemplar, porém, os meus deixando
E no que esse orbe faz onipotente,
15 Quando em seu giro atenta-se os fitando,
Um ponto vi, que lume tão fulgente
Dardejava, que a vista deslumbrada,
18 Fechava-se ante o lume translucente;
Yates Thompson
Estrela, ao parecer, mais apoucada,
Junto dela, de lua figurada,
21 Como estrela ao pé de outra colocada.
Como a c’roa talvez, que se depara
Cingindo astro, que a torna luminosa,
24 Quando o vapor que a tem mais condensara,
Ígneo círc’lo, em carreira impetuosa.
Distante, ao Ponto mais veloz cercava
27 Do que a esfera que vai mais pressurosa.
Este círc’lo primeiro outro abraçava;
Ao terceiro o segundo, outro ao terceiro,
30 Ao quarto o quinto e o sexto o circundava.
Tão largo o sétimo era, que, inda inteiro,
Abrangido, por certo, o não teria
33 Aquele, que de Juno é mensageiro.
Oitavo e nono assim: mas se movia
Mais lento cada qual, segundo ele era
36 Mais longe do primeiro, que corria.
E a flama rutilava mais sincera
No que da Excelsa luz mais perto estava
39 Creio que em fluxo seu mais recebera.
Mas Beatriz, que o enleio meu notava
— “Daquele Ponto o céu e a natureza
42 Estão na dependência” — me falava.
“Olha o círc’lo mais próximo e a presteza,
Que tanto lhe acelera o movimento:
45 De ardentíssimo amor punge-o a viveza.” —
— “Se do mundo.” — eu lhe disse — “o regimento
Fosse qual nestes orbes aparece
48 Do que ouço eu conseguira já contento;
“Mas no mundo sensível me parece
Ser cada esfera tanto mais divina,
51 Quanto mais longe do seu centro desce,
Gustave Doré
“Se instruir-me o querer teu determina
Neste seráfico, estupendo templo,
54 Que só com luz e com amor confina,
“Explicar-me te digna, porque o exemplo
Não se conforma em tudo ao seu modelo:
57 Por saber a razão em vão contemplo” —
— “De desatar o nó se ardente anelo
Teus dedos não contentam, não te espante:
60 Tal é, porque ninguém tentou solvê-lo.” —
Tornou-me ela e seguiu: — “Terás bastante
No que direi de luz ao entendimento:
63 Aguça o engenho e escuta vigilante.
“Nos círc’los corporais o crescimento
Regula pelo influxo, que é spargido
66 Nas partes que lhes formam complemento.
“Mor bondade, mor bem tem produzido
De mor bem foi mor corpo aquinhoado,
69 Se igual primor nas partes é contido.
“O círc’lo, pois, do qual arrebatado
Gira o alto universo, é referente
72 Ao de amor e ciência mais dotado.
“Se à virtude a medida propriamente
Adaptas, não regendo-te a aparência
75 Das substâncias, que em círc’los tens em frente,
“Mirífica hás de ver correspondência
Entre maior e mais, menor e menos
78 Em cada céu e a sua inteligência.” —
Como os ares são fúlgidos, serenos,
Se Bóreas sopra aquela face inchando,
81 Que os hálitos difunde mais amenos.
Resolvendo-se a névoa e se apagando
A sombra que o hemisfério enegrecia,
84 E o céu, a rir-se, as pompas ostentando:
Assim eu, quando aquela que me guia
Com sua explicação minha alma aclara,
87 E a verdade, qual astro, me alumia.
Depois que as vozes suas rematara,
Bem como ferro a faiscar fervente,
90 Dos círculos cad’un flamas dispara.
Cada centelha incêndio faz ingente
Em soma tal, que a do xadrez passava,
93 Dobrando-se o algarismo infindamente.
De coro em coro hosana ressoava
Ao Ponto, que ao seu ubi, onde têm stado
96 E onde sempre estarão pra sempre os trava.
Ela, o espírito meu vendo atalhado,
Disse-me: — “Aqueles círculos primeiros
99 Te hão Serafins e Querubins mostrado.
Assim nos orbes seus volvem ligeiros
Por semelhar-se ao Ponto e o conseguindo,
102 Segundo a vê-lo estão mais altaneiros.
“Os Amores, que em torno estão, seguindo,
Tronos se chamam do divino aspeto
105 O primeiro ternário concluindo.
“Prazer, bem sabes, todos têm seleto,
Quanto mais sua vista se aprofunda
108 Na verdade, alto fito do inteleto.
“Desta arte se conhece que se funda
Mais na visão celestial ventura
111 Do que no amor, ação, que vem segunda.
“Da visão é a medida a mercê pura,
Por vontade e por graça produzida:
114 De grau em grau se enalça a criatura.
“Outro ternário, que do céu movida.
Germina em primavera sempiterna,
117 Pelo Áries noturno não despida,
“Hosana entoa na harmonia eterna
Com três coros; que soam de alegria
120 Em ordens três, em cujo seio interna.
“Ordens três compreende a jerarquia,
Dominações, Virtudes, ocupando
123 Potestades final categoria.
“Nos penúltimos círculos girando,
Principados e Arcanjos resplandecem;
126 E dos Anjos, após festivo bando.
“No Ponto as Ordens todas se embevecem,
De baixo a Deus são todas atraídas,
129 E uma das outras a atração padecem.
Yates Thompson
“Contemplando-as, idéias tão subidas
Dionísio formou com tanto zelo,
132 Que as fez, como eu, por nomes conhecidas.
“Não quis Gregório como norma tê-lo;
Neste céu quando entrou, porém, se ria
135 Do erro, em que estivera, ao percebê-lo.
“Mortal, que o grã mistério compreendia
E o disse à terra, não te mova espanto:
Quem tinha-o visto aqui lhe descobria
139 E mais verdade deste império santo.” —
NOTAS DO CANTO XXVIII
[1] 33. Aquele que de Juno é mensageiro, Íride, o arco-íris.
[2] 38. Excelsior luz, Deus.
[3] 64. Circ’los corporais, os céus do mundo sensível.
[4] 67-69. Mor bondade etc.; os corpos que contêm em si maior bondade difundem maior bem.
[5] 73-78. Se a virtude etc.; medindo os Céus não pela aparência, mas pela virtude, verás que o menor que está mais perto de Deus corresponde ao maior no mundo sensível; e assim por diante.
[6] 9 4-96. De coro em coro etc.; os coros hosanavam a Deus que os mantém no seu lugar, onde estiveram e ficarão por toda a eternidade.
[7] 109-111. Desta arte se conhece etc. Era uma questão da escolástica: a beatitude celeste consiste na visão ou no amor? Dante segue S. Tomás que a põe na visão de Deus.
[8] 121-126. Ordens três etc. O Poeta colocou nos primeiros três círculos os Serafins, os Querubins e os Tronos; nos três círculos sucessivos estão as Dominações, que ensinam a arte de dominar para o bem, as Virtudes que operam os milagres, e as Potestades que ensinam a respeitar a autoridade. Nos últimos círculos estão os Principados e os Anjos e Arcanjos.
[9] 131. Dionisio, o Aeropagita, que escreveu um livro sobre as hierarquias celestes.
[10] 133. Gregório, o papa S. Gregório Magno que divergiu das opiniões de S. Dionisio sobre as hierarquias celestes.
[11] 138. Quem tinha-os visto etc., S. Paulo, que em vida teve uma visão das cousas celestes e foi mestre de S. Dionisio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário