sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 946 : A DIVINA COMÉDIA

PARAÍSO

CANTO XXVII

S. Pedro exprobra os maus pastores da Igreja; e todos os santos manifestam a sua aprovação às palavras do Apóstolo. Novamente o Poeta contempla a Terra, e, depois, com Beatriz, eleva-se ao Primeiro Móvel.
GLÓRIA ao Pai! Glória ao Filho! ao Espírito Santo!
Uníssono entoava o Paraíso:
3 Senti-me inebriado ao doce canto.
Gustave Doré
Pareceu-me o que eu via um doce riso
Do universo: tomava-me a ebriedade
6 Pelos olhos e ouvidos o juízo.
Ó júbilo! Ó inefável f’licidade!
De paz ó vida inteira e de ternura!
9 Riqueza certa, isenta de ansiedade!
Fulgia-me ante os olhos a luz pura
Dos esplendores quatro; mais brilhante
12 O que veio primeiro eis se afigura!
E tal se me apresenta o seu semblante,
Qual fora Jove, se, aves ele e Marte,
15 A plumagem trocassem rutilante.
A Providência, que no céu reparte
Tarefa a cada qual, calar fizera
18 O venturoso coro em toda parte,
Quando lhe ouvi: — “A cor se em mim se altera
Não o estranhes: enquanto estou falando
21 Mudança igual em todos ver espera.
“Quem, meu lugar na terra ora usurpando,
Meu lugar, meu lugar, vago em presença
24 De Cristo o deixa, converteu nefando
Yates Thompson
“Meu cemitério na sentina imensa
De sangue e podridão, com que o perverso,
27 Do céu lançado, frui delícia intensa.” —
O céu então eu vi todo submerso
Na cor, que por manhã e à tarde acende
30 Sobre as nuvens o sol do lado adverso.
Qual a dama, que à virtude cultos rende
E, de si bem segura, se enrubesce,
33 Quando torpezas de outra ouve e compreende,
Beatriz transmudada me parece,
Ao céu ante a paixão do Onipotente
36 Igual eclipse em seio que envolvesse.
Prosseguiu logo o Apóstolo eminente;
E tanto a voz lhe estava demudada,
39 Que mais não fora o vulto seu rubente.
— “Com sangue meu a Igreja alimentada
Não foi, nem Lino e Cleto o seu lhe deram
42 De ouro em ganância para ser mudada.
“Como Calixto e Pio mereceram,
Urbano e Sixto a sempiterna vida?
45 Pós muito pranto o sangue seu verteram.
“Por nossos sucessores dividida
Não quisemos a grei — parte chamada
48 À destra, parte à esquerda repelida;
“Nem que das chaves fosse a insígnia usada
Por estandarte em campo sanguinoso
51 Contra cristãos em guerra encarniçada.
“Nem que, por privilégio mentiroso
De traficância, em selo eu figurasse
54 Quanta vez de pudor me acendo iroso!
“Com vestes de pastor lobo rapace
Daqui em cada pascigo se avista:
57 Para que não surgiu Deus, que os fulminasse?
“De Gasconha e Cahors raça malquista
Beber-nos sangue vem: belo começo,
60 O indi’no fim que tens, quanto contrista!
“Mas Deus que a Roma, do seu mal no excesso,
De mundo em glória os Cipiões mandava,
63 Dará socorro, como foi-me expresso.
“E tu, que o peso da matéria grava,
Voltando, ó filho, ao mundo lhe revela
66 Quanto eu te digo dessa gente prava.” —
Como o vapor nos ares se congela,
E em flocos baixa, quando o sol tocado
69 Pelas pontas está da Cabra bela;
Assim vi eu o éter adornado
De clarões triunfantes, que detido
72 Haviam-se na altura ao nosso lado.
Tinha-os a vista na ascensão seguido
E os seguiu té que enfim subir avante
75 Pelo espaço não foi-lhe permitido.
Que eu não podia ver mais adiante
Notando, Beatriz disse: — “Repara
78 Quanto agora, girando, estás distante.” —
Desde a hora, em que a terra eu contemplara,
Por todo o arco, que o clima faz primeiro,
81 Do meio até o fim, já me avançara.
A passagem, que Ulisses aventureiro
Além Gades tentou e a plaga via,
84 Em que Europa foi cargo prazenteiro,
Naquela área inda mais divisaria;
Porém sob os meus pés o sol andava
87 Distância, que a de um signo precedia.
A namorada mente, em que reinava
Sempre a Senhora minha, no incentivo,
90 Mais que nunca de olhá-la se inflamava.
Se de arte ou natureza almo atrativo
Pelos olhos prender nos pode a mente,
93 Seja em pintura, seja em corpo vivo,
Nada foram, conjuntas, certamente,
Ante o enlevo que o peito me ilumina,
96 Quando me volta ao gesto seu ridente.
Virtude, olhando-a em mim tanto se afina
Que do ninho de Leda me destrava
99 E ao céu velocíssimo me empina.
Tanto na altura e brilho se mostrava
Uniforme este céu, que eu não sabia
102 Qual pouso Beatriz me destinava.
Ela, porém, que o meu desejo via
No sorriso tão leda assim começa,
105 Que em seu rosto exultar Deus parecia.
— “O movimento, que no centro cessa,
Em torno ao qual, porém, tudo o mais gira,
108 Daqui partindo à roda se endereça.
“Somente a sua ação este céu tira
Da soberana Mente, em que se acende
111 O amor, que o move, o influxo, que respira.
“De luz e amor um círculo o compreende,
Assim como ele aos mais; deste precinto
114 Unicamente quem lho cinge entende.
“Seu movimento é por si só distinto,
Por ele os outros céus medidos sendo,
117 Como dez por metade e por seu quinto.
“Ficas, portanto, ao claro conhecendo
Como o tempo a raiz neste céu tenha,
120 As ramas pelos outros estendendo.
“Fatal cobiça; que os mortais despenha
Em tão profundo pélago, que alçar-se
123 Do abismo fora a vista em vão se empenha!
“Nos homens o querer pode enflorar-se,
Mas de chuvas contínuas açoutado
126 Bom fruto são não há-de conservar-se.
“Fé, inocência, abrigo têm buscado
Nas crianças; mas cada qual se esquiva
129 Antes que à face o buço haja apontado.
“Quem balbucia de comer se priva;
Em tendo solta a língua, a qualquer hora
132 Mostra em toda iguaria fome ativa.
“Quem balbucia a mãe respeita e adora;
Mas, quando a voz já sente desprendida,
135 Vê-la em mortalha o seu desejo exora.
“Assim de alva se torna enegrecida
A cutis da gentil filha daquele,
138 Que traz manhã, da noite em despedida.
“Estranheza, porém, de ti repele
Vendo o gênero humano transviado:
141 Quem há que em bem regê-lo se desvele?
“Por força do centésimo olvidado
Inda antes de deixar Janeiro o inverno,
144 Hão de as esferas dar tão forte brado,
“Que a fortuna, de esp’rança alvo hodierno
Fará que as popas dêm lugar às proas,
A armada correrá com bom governo
148 E após as flores virão frutas boas.” —
NOTAS DO CANTO XXVII
[1] 10-11. A luz pura dos esplendores quatro, as almas dos três apóstolos e de Adão.
[2] 13-14. O seu semblante, qual fosse Jove etc., S. Pedro de branco que era ficou vermelho, como o planeta de Marte.
[3] 22. Quem, meu lugar na terra ora usurpando, o papa Bonifácio VIII, que, segundo o Poeta, obteve o Papado usando de fraudes.
[4] 25. Meu cemitério, Roma ou mesmo o Vaticano, onde segundo a tradição foi sepultado o corpo de S. Pedro.
[5] 41. Lino e Cleto, S. Lino e S. Cleto foram sucessores de S. Pedro.
[6] 43-44. Sixto foi elevado ao Papado no ano 128; Pio em 154; Calixto em 218 e Urbano em 231.
[7] 58-59. De Gasconha e Cahors; o Poeta alude a João XXII de Cahors, elevado ao papado em 1316 e a Clemente V de Gasconha, papa em 1305.
[8] 79-84. Desde a hora etc.; desde a hora em que pela primeira vez eu olhara para a terra, notei que havia percorrido a quarta parte da esfera e, por isso, eram passadas seis horas.
[9] 9 8-99. Ninho de Leda, constelação dos Gêmeos (Castor e Pólux nasceram dos amores de Leda com o cisne).
[10] 142-144. Por força do centésimo olvidado etc., antes do mês de janeiro não mais pertencer ao inverno, e sim à primavera, pela acumulação das frações de tempo que não foram calculadas na reforma do calendário efetuada por Júlio César, que ainda vigorava no tempo do Poeta.
[11] 147. A armada, a humanidade.

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