sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 917 : A DIVINA COMÉDIA

PURGATÓRIO
CANTO XXXI
Beatriz continua repreendendo a Dante, o qual confessa os seus pecados. Matilde o mergulha, então, no rio Letes. Depois as sete damas que participavam da procissão (as quatro virtudes cardiais e as três virtudes teologais) o levam até Beatriz, pedindo a ela que se desvele diante do seu fiel. Beatriz tira o véu.
“Ó TU que estás além da água sagrada”
— Prosseguiu Beatriz incontinênti,
3 A ponta a mim voltando dessa espada,
Que de revés já fora assaz pungente —
“Diz se é verdade, diz! À culpa unida
6 Esteja a confissão do penitente.” —
Tanta a força mental foi confrangida,
Que a voz desfaleceu, se erguer tentando,
9 Expirou-me nas fauces inanida.
Esperou; disse após: — “Que estás pensando?
Responde: inda não tens nágua apagado
12 Lembranças do passado miserando?” —
No meu enleio, de temor travado,
Um tão confuso sim, trêmulo, expresso,
15 Que houve mister dos olhos ajudado.
Como em besta entesada em grande excesso,
Quebrando-se arco e corda, parte a seta
18 E no alvo dá sem força do arremesso,
Stando minha alma em tanto extremo inquieta
E em suspiros e lágrimas rompendo,
21 Perdeu a voz o som, que a língua enceta.
— “Se ao meu querer” — prossegue — “obedecendo
Tinhas fanal, que ao bem te conduzisse,
24 De anelos teus a mira ser devendo,
“Onde o poder de estorvos, que impedisse
Teus passos? Quais grilhões que os retivessem
27 Na vereda, que avante ir permitisse?
“Houve encantos, que a outros te prendessem,
E delícias, que tanto te atraíram,
30 Que a tua alma enlear assim pudessem?” —
Do peito agros suspiros me saíram;
Para falar-lhe apenas tive alento,
33 E a voz a custo os lábios exprimiram.
Tornei chorando: — “O engano, o fingimento
Ao terreno prazer me hão transviado,
36 Em vos nublando a face o passamento.” —
— “Se ocultaras” — falou-me — “o teu pecado,
A graveza da culpa ao claro vira
39 Aquele, por quem deves ser julgado.
“Mas se o réu, confessando, tem na mira
O pesar do mau feito, em nossa corte
42 Contra o fio da espada a mó se vira.
“Entanto, por que seja em ti mais forte
De errar o pejo e, no porvir ouvindo
45 Sereias, não procedas de igual sorte,
“Escuta-me, os teus prantos consumindo:
Verás que, inda sepulta, eu te guiara,
48 Pela contrária rota conduzindo.
“Jamais arte ou natura te mostrara
Enlevo, quanto a rara formosura
51 Do corpo, em pó tornado, em que eu morara.
“Se comigo baixara à sepultura
Teu supremo prazer, como arrastar-te
54 Pôde, após si, mortal delícia impura?
“Enganos tais sentindo saltear-te,
Aos céus alçando a mente deverias
57 Té minha eternidade sublimar-te,
“E não baixar do vôo, em que subias
Te expondo a novos tiros, atraída
60 Por jovem, por vaidades fugidias.
“Será duas, três vezes iludida
Ave inexperta; mas a seta, o laço
63 Pássaro velho esquiva, apercebido.” —
Qual menino, que a mãe por largo espaço
Increpa; e, baixa a fronte, envergonhado
66 Reconhece em silêncio o errado passo,
Tal me achava. — “De ouvir se estás magoado.
Levanta a barba!” — ainda prosseguia —
69 “Olhando-me, hás de ser mais castigado!” —
Com menos resistência abateria
De Europa o vendaval carvalho altivo
72 Ou da terra, que a Jarba obedecia,
Do que eu alcei o rosto pensativo;
Quando ela disse barba e não semblante
75 A malícia notei e o seu motivo.
Olhos erguendo alfim, do mesmo instante
Aos ares vi que flores não lançava
78 A falange dos anjos radiante.
Tímida a vista a Beatriz achava
Voltada ao Grifo, que uma só pessoa
81 Em naturezas duas encerrava.
Além do rio sob o véu e a c’roa
Tanto excede a beleza sua antiga
84 Quanto em vida as que mais fama apregoa.
E do pesar pungiu-me tanto a urtiga,
Que das cousas, que mais na terra amara
87 A mais cara odiei como inimiga.
Remorso tal a mente me assaltara,
Que vencido tombei: qual fiquei sendo
90 Sabe quem dor tão viva motivara.
Ao coração a força me volvendo
Notei a dama, que primeiro eu vira
93 Ao lado meu, — “Abraçai-me!” — dizendo.
Té ao colo no rio me imergira;
E correndo, qual leve lançadeira,
96 Das águas sobre a tona a si me tira.
Já próximo à beatífica ribeira,
Ouvi Asperges me tão docemente,
99 Que o não descrevo ou lembro, inda que o queira.
Matilde, abrindo os braços de repente,
Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me;
102 Era dessa água haurir conveniente.
Gustave Doré
Assim purificado, ela guiou-me
Das damas quatro para a dança bela,
105 E cada uma nos braços estreitou-me.
— “Cada qual, ninfa aqui, nos céus estrela,
Antes que Beatriz descesse ao mundo,
108 Servas de ordem suprema somos dela.
“Os seus olhos verás; mas no jucundo
Lume interno hás de ter vista aguçada
111 Pelas três cujo olhar é mais profundo.” —
Modulando na angélica toada,
Ante o Grifo consigo me levaram:
114 Lá Beatriz para nós era voltada.
— “Em contemplar sacia-te!” — falaram —
“As esmeraldas que ora tens presentes,
117 Donde os farpões de amor te vulneraram.” —
Mais que a flama desejos mil ardentes
Prenderam olhos meus aos seus formosos,
120 Na adoração do Grifo persistentes.
Qual sol no espelho, nesses luminosos
Astros o Grifo se alternando, eu via
123 Seres dois refletir misteriosos:
Meu espanto, ó leitor, qual não seria
Vendo o objeto na imagem transmutado,
126 Quando constante em si permanecia?
Enquanto eu de prazer e pasmo entrado,
Esse doce manjar estava gozando,
129 Que sacia mas sempre é desejado,
De ordem mais alta ser manifestando
Pelo meneio, as três se adiantaram,
132 Por angélico estilo modulando.
“Os olhos santos, Beatriz” — cantaram —
“Oh! volve ao servo teu leal constante
135 A quem por ver-te os passos não custaram.
“Nos dá por grã mercê que o fido amante
Sem véu segunda formosura
138 Contemple nesse divinal semblante!” —
Ó resplendor da luz eterna e pura!
Quem do Parnaso à sombra descorando
141 E da água sua haurindo alma doçura,
Aturdido não fora, se arrojando
A tentar descrever qual te mostraste,
Quando o céu de harmonias te cercando,
145 Ao ar patente a face revelaste?
NOTAS DO CANTO XXXI
[1] 71-72. De Europa etc. Ao vento boreal que sopra na nossa região, ou ao vento meridional que sopra na África, onde reinou Jarbas.
[2] 75. A malícia notei etc., Beatriz disse “barba” e não semblante, querendo referir-se à idade madura de Dante.

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