sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 912 : A DIVINA COMÉDIA

PURGATÓRIO
CANTO XXVI
Entre os luxuriosos e os que pecaram contra a natureza Dante encontra o poeta Guido Guinicelli, ao qual exprime a sua profunda admiração. Guido lhe aponta o poeta provençal Arnaud Daniel, que o saúda em versos provençais.
ENQUANTO imos a borda costeando.
Um após outro, o Mestre repetia:
3 “Eu te previno, vai com tento andando!’
O sol pela direita me feria;
Purpureava a luz todo o poente:
6 Do céu o azul de branco se tingia.
Co’a sombra minha ainda mais rubente
Parece a flama; e as almas, que passavam,
9 Notando-a davam-me atenção ingente.
Nessa estianheza ensejo deparavam
Para, entre si, conversação travarem.
12 “Não é fictício o corpo seu” — falavam.
Quando podiam, mas tendo cuidado
Avançavam por mais certificarem,
15 O fogo expiatório em não deixarem.
— “Tu, que vais após outros colocado,
Mostrando ser, não tardo, respeitoso,
18 Responde: em fogo e sede ardo, abrasado.
“Não sou eu só de ouvir-te desejoso:
Quantos vês da resposta sentem sede
21 Mais que Etíope da água cobiçoso.
“Diz-nos como o corpo teu parede
Oponha desta sorte à luz do dia:
24 Não te colheu da morte acaso a rede?” —
Uma sombra falou-me. Eu pretendia
Logo explicar; porém fui distraído
27 Pelo que então de novo aparecia.
Pelo caminho andando escandecido,
Outra grei ao encontro veio desta:
30 Atalhei-me, em mirar pondo o sentido.
De parte a parte se dirige presta
Uma alma a outra; osculam-se e em seguida
33 Vão-se, contentes dessa breve festa.
Assim da negra legião saída,
Em marcha, toca em uma outra formiga,
36 Por saber do caminho ou sorte havida.
Separando-se após a mostra amiga,
Antes que o giro sólito transcorra
39 Cada uma grei em brados se afadiga.
— “Sodoma!” — clama a última — “Gomorra!”
E a outra: — “Entrou Pasifae na vaca,
42 Por que à luxúria sua touro acorra.” —
Como grous, de que um bando se destaca
Para os Rifeus e o outro pra o deserto,
45 Pois calma ali e frio aqui se aplaca,
Uns se vão, outros vêm; voltando, ao perto
O hino se renova, e o pranto e o brado,
48 Que tem, qual mais convém, efeito certo.
Os mesmos, que me haviam perguntado,
De mim como inda há pouco, se acercaram:
51 Stá desejo nos gestos desenhado.
Vendo ainda o que já manifestaram,
— “Sabeis vós, que tereis de glória em dia,
54 Paz que os vossos martírios vos preparam,
Gustave Doré
“Que inda não jaz meu corpo em terra fria;
Comigo vem na própria compostura,
57 Com seu sangue e seus membros” — lhe dizia.
“Minha cegueira aqui a luz procura:
Lá no céu santa Dama há conseguido
60 Que eu, vivo, por aqui me eleve à altura.
“Dizei-me (e seja em breve concedido)
Quanto anelais, no céu, que é de amor cheio
63 E em que espaço mais amplo está contido!
“Para que eu tenha de narrá-lo o meio,
Quem fostes e também que turba é aquela,
66 Que como hei visto ao vosso encontro veio.” —
Se o pasmo seu o montanhês revela,
Quando rude e boçal vê de repente
69 Quanto pode encerrar cidade bela,
Na grei não foi o efeito diferente.
Tornando sobre si, porém, do espanto,
72 Que se esvai logo em peito preminente,
— “Ditoso tu, que vendo o nosso pranto” —
Respondeu quem primeiro há perguntado —
75 “Alcanças ao viver ensino santo!
“Inquinaram-se aqueles no pecado,
Porque César outrora, triunfando,
78 Rainha, em vitupério, foi chamado.
“Eis por que se acusavam se apartando,
Contra si de — Sodoma! alçando o brado,
81 Do fogo à pena o opróbrio acrescentando.
“Hermafrodito foi nosso pecado;
Mas tendo as leis humanas transgredido
84 De brutos no apetite desregrado,
“Por nossa injúria o nome é repetido,
Quando partimos, da mulher impura,
87 Que em bestial figura besta há sido.
“Se queres, vendo a nossa nódoa escura,
Do nome de cada um ser instruído,
90 Não sei, nem tempo para tal nos dura.
“Mas o meu te farei bem conhecido;
Vês Guido Guinicelli: o crime expia
93 Por se haver inda a tempo arrependido.” —
Quais, ante a fúria em que Licurgo ardia,
Os filhos dois achando a mãe, ficaram,
96 Tal senti, sem correr viva alegria,
Quando o nome essas vozes declararam
Do pai meu e do pai de outros melhores,
99 Que em doce metro amores decantaram.
Sem falar, sem ouvir perscrutadores
Longamente olhos meus o contemplaram:
102 Vedavam-me acercar do fogo ardores.
Depois que em remirá-lo se enlevaram,
Ao seu serviço declarei-me presto,
105 E solenes promessas o afirmaram.
— “Imprimiu tal vestígio o teu protesto” —
Tornou — “no peito meu agradecido,
108 Que fora além do Letes manifesto.
“Se hei de ti a verdade agora ouvido,
O que di’no me fez do sentimento,
111 Que tens na voz, nos olhos insculpidos?” —
E eu: — “Das rimas vossas o concento,
Que, enquanto usar-se do falar moderno,
114 Salvas hão de viver do esquecimento.” —
— “O que te indico, irmão” — tornou-me terno
(E seu dedo outra sombra me apontava)
117 Mais primor teve no falar materno.
“Nos versos, nos romances superava
A todos: stultos só dizer ousaram
120 Que o Limosim aquele avantajava.
“Pelo rumor verdade desprezaram,
E, como arte e razão desconheceram,
123 Sem fundamento opinião formaram.
“Assim muitos outrora procederam
Com Guittone e o seu nome hão proclamado;
126 Mas verdade alfim todos conheceram.
“E pois que o privilégio hás alcançado
De entrar nesse mosteiro portentoso,
129 Por Cristo, como abade governado,
“Um Pater Noster diz por mim piedoso;
Quanto mister havemos neste mundo,
132 Onde ato algum não há pecaminoso.” —
“Por dar lugar ao spírito segundo,
Já próximo, no fogo desparece.
135 Qual peixe, quando imerge de água ao fundo.
Acerquei-me da sombra que aparece,
E disse que ao seu nome apercebia
138 Meu desejo o lugar que assaz merece.
Logo assim livremente me dizia:
— “Tão cortês vosso rogo é, que escutando,
141 Me encobrir não quisera ou poderia.
“Arnaldo sou, que choro e vou cantando,
Triste os erros passados meus lamento,
144 E o fausto dia estou ledo esperando.
“E peço-vos pelo alto valimento,
Que da escada a eminência ora vos guia,
Que em tempo vos lembreis do meu tormento.”
148 E, após, ao fogo apurador se envia.
NOTAS DO CANTO XXVI
[1] 40. Sodoma... Gomorra, V. Inferno, canto XI, 50; cidades que Deus destruiu por pecarem contra a natureza.
[2] 41. Pasifae, V. Inferno, canto XII, 13; mulher do rei de Creta, para unir-se com um touro se colocou numa vaca de madeira; e desta união nasceu o Minotauro.
[3] 44. Rifeus, montanhas da Moscóvia boreal.
[4] 77. César... rainha, em vitupério, foi chamado, conta Suetônio que os soldados de César, no triunfo que lhe foi concedido por ter vencido os Galos, cantavam: “César submeteu as Gálias, Nicomedes a César”, aludindo às suas relações com o rei Nicomedes.
[5] 92. Guido Guinicelli, célebre poeta bolonhês n. em 1230 e m. em 1276.
[6] 94-95. Quais, ante a fúria etc., Ipsifile condenada à morte por Licurgo, rei da Neméida, mas foi salva pelos dois filhos que, antes, não a conheciam.
[7] 115. O que te indico etc., o trovador Arnaud Daniel, que viveu na metade do século XII.
[8] 120. O limosim, Gerault de Berneil de Limonges, outro trovador provençal.
[9] 125. Guittone de Arezzo, poeta aretino do sécuio XII.

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