sábado, 5 de maio de 2018

T1 N° 919 : A DIVINA COMÉDIA

PURGATÓRIO
CANTO XXXIII
Beatriz anuncia, com linguagem misteriosa, que brevemente aparecerá quem libertará a Igreja e a Itália da servidão e da corrupção. Impõe-lhe que escreva o que viu. Pede, depois, a Matilde que o mergulhe nas águas do rio Eunoé. Dante, depois da imersão, sente-se mais forte e disposto a subir às estrelas.
DEUS, venerunt gentes, alternando,
Em coros dois, suave melodia
3 Cantam as ninfas, pranto derramando.
E Beatriz, a suspirar, ouvia
Tão dorida, que pouco mais, outrora
6 Junto da Cruz mostrara-se Maria.
Quando lhe coube alçar a voz canora,
Entre as formosas virgens posta em pé,
9 Com santo ardor, que as faces lhe colora:
“Modicum et non videbitis me,
Caras irmãs, et iterum” — tornava —
12 “Modicum et vos videbitis me”.
Depois, antes de si as colocava,
E a mim e a dama e ao Vate, que restara,
15 Pra seguir os seus passos acenava.
Ia assim: que ela houvesse eu não julgara
O seu décimo passo em terra posto,
18 Eis sua vista na minha se depara.
— “Mais perto” — disse com sereno rosto —
“Caminha; pois falar quero contigo,
21 E o leves a me ouvir star bem disposto.” —
Beatriz, logo em tendo-me contigo,
— “Por que” — prossegue —“irmão não hás querido
24 Me inquirir, quando vens assim comigo?” —
Fiquei, como o que o espírito aturdido,
Ao seu superior falando sente,
27 E apenas balbucia confundido.
Falei, com voz cortada, reverente:
— “Quanto hei mister sabeis mui bem, senhora,
30 O que seja em prol meu sabeis prudente.” —
— “De temor e vergonha desde agora” —
Tornou — “isento sê, stando ao meu lado:
33 Como quem sonha as vozes não demora!
“A caixa, que a serpente há devastado,
Já foi: de Deus castigo aos criminosos
36 Ser não pode por sopa obliterada.
“Não faltarão herdeiros cuidadosos
Da águia, que ao carro as suas plumas dera,
39 E o tornou monstro e presa aos cobiçosos.
“Vejo o porvir e a voz minha assevera
O que propínquos astros anunciam:
42 Nada os estorva, nem seu curso altera.
“Um quinhentos dez cinco prenunciam,
Que o céu manda a punir a depravada
45 E o gigante: ambos juntos delinquiam.
“A narração, talvez, de treva inçada,
Como as do Esfinge e Têmis não a entendas,
48 Por parecer-te ao spírito enleada.
“Farão, porém, os fatos que a compreendas;
Quais Náiades, darão do enigma a chave,
51 Sem dano ao trigo, ao gado, sem contendas
“Que na memória tua isto se grave:
Como te falo, assim o ensina aos vivos
54 Que se afanam em buscar morte insuave.
“Lembra os que hás visto feitos aflitivos.
Da árvore o stado narra, que te espanta,
57 Quanto sofreu assaltos dois esquivos.
“Quem despoja ou mutila a sacra planta
Blasfema a Deus, de fato o ofende ousado:
60 Para o seu uso só a criou santa.
“Sperou a primeira alma, que há provado
Do seu fruto, anos mil cinco gemendo
63 Por quem penas em si deu do pecado.
“Tua alma dorme, se não stá sabendo
A causa singular, que a planta há feito
66 Tão alta, o cimo tal largura tendo.
“Se da água d’Elsa não trouxesse o efeito
O teu vão cogitar sobre essa mente,
69 Que escurece, qual sangue à amora o aspeito
“Fora o que eu disse já suficiente
Para o justo preceito compreenderes,
72 Que Deus há posto sobre o tronco ingente.
“Como te ofusca a luz dos meus dizeres.
Porque de pedra tens o entendimento,
75 Que, afeito à culpa, não permite veres,
“Uma imagem te guarde o pensamento,
Como palma ao bordão junta, voltando,
78 Peregrino, em remédio ao esquecimento.” —
— “No cérebro, qual cera conservando” —
Tornei — “a marca do sinete impresso,
81 Vosso verbo se irá perpetuando.
“Mas por que se sublima em tanto excesso
Vossa palavra, sempre apetecida,
84 Que, alcançá-la tentando, desfaleço?” —
— “Por veres” — diz — “que escola pervertida,
Hás cursado, o que, pois, sua doutrina
87 Ao verbo meu não pode ser erguida;
“Pois a vereda vossa da divina
É tão remota, quanto está distante
90 Da terra o céu que ao alto mais se empina” —
— “Não me lembro” — respondo à excelsa amante
“De ter-me às vossas leis nunca esquivado:
93 Não diz-mo a consciência vigilante.” —
— “Possível é que estejas olvidado” —
Respondeu-me a sorrir — “tem na lembrança
96 Que inda há pouco, hás do Lete água tragado,
“E se de flama o fumo dá fiança,
Que o teu querer no erro andou perdido
99 Demonstra o olvido teu com segurança.
“Será da minha voz claro o sentido,
Por que mais facilmente de ora avante
102 Da rude mente seja percebido.” —
Mais demorado, entanto, e coruscante
No círc’lo entrava o sol do meio-dia,
105 Como os climas diversos variante,
Quando as damas, bem como astuto espia,
Que, precedendo a tropa, de andar cessa,
108 Se acaso novidade se anuncia,
Paravam, ao sair da sombra espessa,
Qual aos frios arroios murmurantes
111 Dos Alpes bosque verde-negro of’reça.
Julguei ver Tigre e Eufrates não distantes
Brotar da mesma fonte juntamente
114 E separar-se lentos, quais amantes.
— “Ó glória! ó esplendor da humana gente!
Qual é, dizei-me, essa água, bipartida
117 Depois de proceder de uma nascente?” —
— “Ser-te deve a pergunta respondida
Por Matilde” — tornou-me então, falando
120 Em tom de quem por falta fosse argüida,
A dama disse: — “Tudo lhe explicando
Já stive: não podia haver efeito
123 Do Letes, a lembrança lhe apagando.” —
E falou Beatriz: — “Pode ter feito
Escura a mente sua o mor cuidado,
126 Que o entendimento às vezes torna estreito.
“Eis Eunoé, que o curso há derivado:
Conduze-o e, como sabes, o imergindo,
129 Seu coração alenta desmaiado.” —
Gustave Doré
Como alma nobre, ao bem nunca fugindo,
Faz do estranho querer própria vontade,
132 Quando um simples sinal o está pedindo,
A gentil dama, usando alta bondade,
Guiou-me e a Estácio disse, que atendia:
135 — “Segue-o também” — com garbo e majestade
Esse doce licor, que não sacia,
Eu cantara, leitor, se desse ensejo
138 Da página uma parte inda vazia.
Mas, porque todas ocupadas vejo
E ao meu segundo Cântico aplicadas
141 Da arte o freio me tolhe esse desejo.
Como de planta as folhas renovadas
Mais frescas na hástea mostram-se, mais belas,
Puro saí das águas consagradas
145 Pronto a me alar às lúcidas estrelas.
NOTAS DO CANTO XXXIII
[1] 1. Deus venerunt gentes, Salmo 78, no qual David lamenta a contaminação do templo de Jerusalém: “Senhor, as nações entraram no teu domínio e contaminaram o teu templo.”
[2] 10. Modicus et non videbitis me, “pouco tempo passará e não me vereis mais”, S. João Ev. XVI, 16; Beatriz responde: “e novamente passará pouco
tempo e me vereis.” Provável alusão ao pouco tempo que a Santa Sé teria ficado em Avinhão.
[3] 36. Sopa, a sopa que, em sinal de expiação, o homicida comia sobre o túmulo do assassinado.
[4] 43. Um quinhentos dez cinco, um DVX, isto é, um chefe, um capitão, enviado de Deus, o qual punirá a Cúria Romana e o rei da França.
[5] 47. Esfinge, que propôs o enigma a Édipo. - Têmis, que respondeu em forma obscura a Deucalião, que a foi consultar.
[6] 49-51. Náiades, ninfas das fontes.
[7] 61. A primeira alma, etc. Adam esperou cinco mil anos a vinda de Jesus Cristo, que tomou sobre si o seu pecado.
[8] 67. Elsa, confluente do Arno.
[9] 112. Tigre e Eufrates etc., o Letes e o Eunoé pareciam esses dois rios; pois nasciam na mesma fonte e, depois, se afastavam, aos poucos, um do outro.

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